Reconhecer
que o nosso conhecimento é limitado permite-nos compreender por que
devemos combater o dogmatismo e o fanatismo. O dogmatismo professa a
capacidade do homem a atingir a certeza absoluta; o fanatismo é uma
atitude passional de intolerância dirigida para os que não
partilham a nossa fé ou as nossas convicções.
Vem
isto a propósito de um tema filosófico-religioso, hoje um pouco
esquecido, mas que encontrei numa obra recentemente editada. Trata-se
das teorias ditas do direito divino ou natural, segundo parece muito
acariciadas por pensadores do século XVII.
Este
tema traz-me à ideia a problemática da interpretação de textos
antigos, que por vezes, analisados fora da época, das circunstancias
e da intenção do autor, prestam-se facilmente a serem moldados à
forma do pensamento daquele que só procura o que quer encontrar.
Segundo
os analistas da história das ideias, as teorias nitidamente
favoráveis ou tendendo a legitimar estados de governação de
direito absoluto, em que as classes constituintes têm apenas deveres
a cumprir e os direitos são única e exclusivamente do domínio do
poder governante, parece ter surgido no século XVII. Primeiro com
Thomas Hobbes que viveu na primeira metade deste século e sofreu a
influência dos sobressaltos políticos da sua Inglaterra natal.
Historia movimentada e caótica entre o soberano absolutista Carlos
1° e o seu parlamento, que acabou com a instauração de um regime
militar de ditadura pessoal dirigido por Oliver Cromwell. Hobbes
fundamentou várias ideias de politica de governação, inovadoras
para a época, cujo fio condutor era a necessidade de um poder forte
e autoritário, ao qual as classes sociais deviam estar submetidas,
sob pena de se ver a paz social comprometida em permanência.
Estas
teorias, foram atacadas por vários defensores do liberalismo como
John Locke, ou simplesmente rejeitadas por outros como Jean Jacques
Rousseau, mas foram acarinhadas e defendidas por vários pensadores,
dos quais se pode destacar o nosso português Francisco Suarez (De
Ligibus), e o francês Jacques Bossuet. Estes autores entendem
justificar o absolutismo de Filipe II de Espanha e de Luis XIV da
França, defendendo a teoria dita do direito divino ou natural, a
qual é uma suposta dádiva de Deus.
Ora,
segundo nos diz a história, os apologistas destas teorias foram
buscar o selo para as legitimar a certas passagens de textos
sagrados, considerados como fonte única de todo o conhecimento,
sobretudo na Epístola de S. Paulo aos Romanos, quando ele exorta a
submissão total à autoridade estabelecida: (Cap. 13
-1 Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não
há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram
instituídas por Deus. -2
Assim, aquele que resiste à autoridade, opõe-se à ordem
estabelecida por Deus; e os que a ela se opõem, atraem sobre si a
condenação.)
Para
os defensores das teorias do direito divino esta é a tese
fundamental segundo a qual os príncipes são os ministros de Deus
sobre a Terra, o que significa que a obediência lhes é devida como
ao próprio Deus, mesmo que sejam os piores déspotas.
Quem
percorrer a história das nações e dos povos, encontrará, por todo
o lado e em todas as épocas, exemplos que confirmam a exploração
deste conceito. Alguns abertamente assentes nas exortações do
inflexível S. Paulo, outros camuflados em egoísmos e sede de poder,
mas todos estigmatizados pelo dever de obediência, veiculado por
textos considerados inquestionáveis.
A
leitura e interpretação livre e, por vezes tendenciosa, de textos
pensados e escritos em épocas e contextos dos quais pouco conhecemos
e que, em todo o caso, exprimem ideias e conceitos, hoje sujeitos ao
peso imensamente esmagador de dois mil anos de evolução do homem,
continuam, hoje, a alimentar ideias e actos incompatíveis com a base
das doutrinas que é suposto promoverem. Hoje como ontem, os
príncipes renascem e imperam. Constroem reinos e principados, senão
em nome de um direito relativo a um Deus, em nome de um desejo de
poder pessoal, assente numa adesão supostamente livre e consentida
de um povo.
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Estamos perante uma distorção dos textos citados ou esta passagem
de S. Paulo não cabe dentro da ética global da sua doutrina?
Quase por acaso, vim ao hoje ao Laje Negra e encontrei esta postagem do Lima. Tem uma pergunta a que eu não poderia ter deixado de responder, caso tivesse lido a postagem. Pois aqui vai o meu comentário, tardio porque tardiamente revisirei a Laje Negra.
ResponderEliminarRespondendo directamente à pergunta final da postagem, devo afirmar que os textos (citados)de S.Paulo não foram distorcidos. Eles dizem o que Paulo quis dizer, isto é, que "todo o poder vem de Deus". Aliás, não é só o "poder" mas tudo o que acontece "debaixo do sol". Na verdade, na idade da pré-ciência, que podemos referenciar até à revolução científica lançada em definitivo a partir do século XVII, pensava-se tudo, mas tudo mesmo, tendo como pressuposto a intervenção directa de Deus no universo e na história humana. O ateísmo é o subproduto da descoberta da "autonomia" da física e da química. E da História. Por mais que os crentes rezem a Deus, os tsunamis continuarão a sua saga destruidora e o sistema solar continuará o seu percurso até ao colapso futuro.
Ler S.Paulo, como se ele tivesse a mundividência da era científica, é um insulto à inteligência do Apóstolo. Interpretar S.Paulo não é confrontá-lo com a ciência do nosso tempo. É,isso sim,perceber exacatamente o que ele quis dizer no seu tempo e para o seu tempo, por forma a entender a fé que professou e ardorosamente propagou.