sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

S. Paulo e o absolutismo



       Reconhecer que o nosso conhecimento é limitado permite-nos compreender por que devemos combater o dogmatismo e o fanatismo. O dogmatismo professa a capacidade do homem a atingir a certeza absoluta; o fanatismo é uma atitude passional de intolerância dirigida para os que não partilham a nossa fé ou as nossas convicções.
     Vem isto a propósito de um tema filosófico-religioso, hoje um pouco esquecido, mas que encontrei numa obra recentemente editada. Trata-se das teorias ditas do direito divino ou natural, segundo parece muito acariciadas por pensadores do século XVII.
      Este tema traz-me à ideia a problemática da interpretação de textos antigos, que por vezes, analisados fora da época, das circunstancias e da intenção do autor, prestam-se facilmente a serem moldados à forma do pensamento daquele que só procura o que quer encontrar.
     Segundo os analistas da história das ideias, as teorias nitidamente favoráveis ou tendendo a legitimar estados de governação de direito absoluto, em que as classes constituintes têm apenas deveres a cumprir e os direitos são única e exclusivamente do domínio do poder governante, parece ter surgido no século XVII. Primeiro com Thomas Hobbes que viveu na primeira metade deste século e sofreu a influência dos sobressaltos políticos da sua Inglaterra natal. Historia movimentada e caótica entre o soberano absolutista Carlos 1° e o seu parlamento, que acabou com a instauração de um regime militar de ditadura pessoal dirigido por Oliver Cromwell. Hobbes fundamentou várias ideias de politica de governação, inovadoras para a época, cujo fio condutor era a necessidade de um poder forte e autoritário, ao qual as classes sociais deviam estar submetidas, sob pena de se ver a paz social comprometida em permanência.
      Estas teorias, foram atacadas por vários defensores do liberalismo como John Locke, ou simplesmente rejeitadas por outros como Jean Jacques Rousseau, mas foram acarinhadas e defendidas por vários pensadores, dos quais se pode destacar o nosso português Francisco Suarez (De Ligibus), e o francês Jacques Bossuet. Estes autores entendem justificar o absolutismo de Filipe II de Espanha e de Luis XIV da França, defendendo a teoria dita do direito divino ou natural, a qual é uma suposta dádiva de Deus.
      Ora, segundo nos diz a história, os apologistas destas teorias foram buscar o selo para as legitimar a certas passagens de textos sagrados, considerados como fonte única de todo o conhecimento, sobretudo na Epístola de S. Paulo aos Romanos, quando ele exorta a submissão total à autoridade estabelecida: (Cap. 13 -1 Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus. -2 Assim, aquele que resiste à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus; e os que a ela se opõem, atraem sobre si a condenação.)
      Para os defensores das teorias do direito divino esta é a tese fundamental segundo a qual os príncipes são os ministros de Deus sobre a Terra, o que significa que a obediência lhes é devida como ao próprio Deus, mesmo que sejam os piores déspotas.
     Quem percorrer a história das nações e dos povos, encontrará, por todo o lado e em todas as épocas, exemplos que confirmam a exploração deste conceito. Alguns abertamente assentes nas exortações do inflexível S. Paulo, outros camuflados em egoísmos e sede de poder, mas todos estigmatizados pelo dever de obediência, veiculado por textos considerados inquestionáveis.
      A leitura e interpretação livre e, por vezes tendenciosa, de textos pensados e escritos em épocas e contextos dos quais pouco conhecemos e que, em todo o caso, exprimem ideias e conceitos, hoje sujeitos ao peso imensamente esmagador de dois mil anos de evolução do homem, continuam, hoje, a alimentar ideias e actos incompatíveis com a base das doutrinas que é suposto promoverem. Hoje como ontem, os príncipes renascem e imperam. Constroem reinos e principados, senão em nome de um direito relativo a um Deus, em nome de um desejo de poder pessoal, assente numa adesão supostamente livre e consentida de um povo.

   - Estamos perante uma distorção dos textos citados ou esta passagem de S. Paulo não cabe dentro da ética global da sua doutrina?

1 comentário:

  1. Quase por acaso, vim ao hoje ao Laje Negra e encontrei esta postagem do Lima. Tem uma pergunta a que eu não poderia ter deixado de responder, caso tivesse lido a postagem. Pois aqui vai o meu comentário, tardio porque tardiamente revisirei a Laje Negra.

    Respondendo directamente à pergunta final da postagem, devo afirmar que os textos (citados)de S.Paulo não foram distorcidos. Eles dizem o que Paulo quis dizer, isto é, que "todo o poder vem de Deus". Aliás, não é só o "poder" mas tudo o que acontece "debaixo do sol". Na verdade, na idade da pré-ciência, que podemos referenciar até à revolução científica lançada em definitivo a partir do século XVII, pensava-se tudo, mas tudo mesmo, tendo como pressuposto a intervenção directa de Deus no universo e na história humana. O ateísmo é o subproduto da descoberta da "autonomia" da física e da química. E da História. Por mais que os crentes rezem a Deus, os tsunamis continuarão a sua saga destruidora e o sistema solar continuará o seu percurso até ao colapso futuro.

    Ler S.Paulo, como se ele tivesse a mundividência da era científica, é um insulto à inteligência do Apóstolo. Interpretar S.Paulo não é confrontá-lo com a ciência do nosso tempo. É,isso sim,perceber exacatamente o que ele quis dizer no seu tempo e para o seu tempo, por forma a entender a fé que professou e ardorosamente propagou.

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