quarta-feira, 2 de maio de 2012

Valores e Direitos Humanos

Há dias dei uma pequena palestra subordinada ao tema em título, integrado num pequeno grupo de conferencistas, aqui na minha pequena aldeia de Balugães. O tema foi proposto pela organizadora, baluganense como eu e amiga de infância, a Dra Aparecida. Fomos quatro conferencistas e cada um discorreu sobre "direitos e valores" de acordo com sua "sensibilidade académica" de jurista, de médico, de psicólogo e de filósofo. Para surpresa de todos, a sala da junta de freguesia estava praticamente lotada. Gente com vontade de saber mais. Ao preparar a minha intervenção tive a preocupação de adequar a forma do discurso e a linguagem à audiência, conhecendo eu quase toda a gente na plateia. Assim, imaginei uma parábola e contei-a, para que todos entendessem perfeitamente a diferença, na grande diversidade que consideramos serem valores e direitos humanos. E, antes de entrar na parábola, propus, como principio fundador dos valores e direitos humanos, a própria vida humana. Nada mais que o "valor da vida" e o decorrente "direito à vida". Queria deixar a mensagem de que tudo, mesmo tudo, estará subordinado ao "valor da vida". O tempo era curto e fiquei longe de explanar o meu pensamento. Por exemplo, de que estamos a falar quando evocamos a "vida" como o valor dos valores e o direito dos direitos. Mas a parábola fez grande parte do "trabalho". Como a imagem,  vale por mil palavras.
 ...
Um viajante do deserto, a certa altura, ficou sem água para beber, debaixo do sol abrasador e ainda longe da cidade destino. Quando o desespero já o dominava quase por completo e via a morte próxima e inevitável, surge diante si, vindo não sabe donde, uma figura misteriosa de homem. À sua esquerda, sobre a areia escaldante, está uma arca entreaberta, a transbordar de ouro, prata e pedras preciosas;  na mão direita segurava um garrafão de água cristalina. O viajante olhou de relance a fabulosa arca mas os seus olhos cravaram-se, esperançosos, no garrafão da água. O homem misterioso apontou-lhe as duas "preciosidades" e disse-lhe que só poderia escolher uma delas. O viajante, apesar do seu estado desesperado, estava no seu juízo perfeito e escolheu a água, pensando sensatamente:
-Que me adianta a arca da fortuna se perder a minha vida neste deserto?
...
 O tempo não permitiu tecer muitas considerações, mas creio que todos compreenderam onde eu queria chegar. Mais adiante voltei à mesma parábola para lhe acrescentar mais um episódio.
 ...
 O viajante retomou a viagem e, um pouco à frente, encontrou outro caminhante na mesma situação desesperada. Este suplicou-lhe que partilhasse um pouco da preciosas água.
-Que acham que fez o nosso viajante agraciado?
Respondeu-lhe que "sim, senhor", mas tinha de lha pagar.
-Não tenho dinheiro, senhor!Responde o pobre homem.
-Então nada feito, meu caro senhor. E seguiu viagem, deixando-o agonizar à sede.

Quis vender o que recebera de graça.
Conclui a minha breve palestra assinalando que nós modelamos uma sociedade baseada no "negócio" e não na solidariedade, como seria de esperar de quem recebeu graciosamente tudo o que é fundamental à vida: a vida em si mesma, ou mais ou menos bem dotada, o ar, as florestas, os mares, os céus. Apropriamo-nos de tudo, a começar pelos dons que recebemos à nascença, fizemos a divisão das terras, dos mares e dos céus e convertemos tudo num imenso negócio de usura. Não há nada que a gente não venda e compre, obedecendo a leis que há muito deixaram de considerar que o valor da vida, além de ser o fundamental é também uma dádiva e que amor com amor se retribui. Olhando a parábola, à luz do direito nacional ou internacional, o viajante é dono da água que só cederá a troco de dinheiro. Vai morrer alguém à sede? A lei, todas as leis, permitem que sigamos adiante como honestos cumpridores da lei. Foi nesta base que criamos as sociedades actuais. Mas está a chegar a hora, e já chegou, em que a nossa consciência humana ou simples sensatez está a obrigar-nos a rever a obra feita. No limite, é criminosa. Não estou a falar de "culpa" mas, sem dúvida, a denunciar o crime que passa despercebido, encoberto por uma miríade de leis e práticas, que não consideram o valor fundamental da vida e do direito à vida que todos recebemos graciosamente. Literalmente, uns chafurdam na fartura e outros morrem ao abandono. Direitos adquiridos? Alguém adquiriu a própria vida? Alguém escolheu ser filho de quem é? Alguém escolheu nascer onde nasceu? Alguém adquiriu a sua inteligencia, capacidade de trabalho, caracter, sensibilidade, tendência afectiva, equilibrio neurológico? Etc etc etc.
Não e não! Mas fizemos leis de apropriação de tudo isto e de tudo o que conseguimos obter a partir dos dons recebidos.
Era bem metido, aqui, o "desapego" budista". A verdade, porém, é que passa tão ao lado da vida real quanto o "desprendimento evangélico" cristão, transformado em "esmola aos pobres". Um e outro acomodaram-se à sociedade que tudo vende e compra em vez de um real empenhamento na sua transformação estrutural para a solidariedade de vida, dando a impressão de que estão, sobretudo, empenhados na "salvação" individual. Mas a transformação vai acontecendo, paulatinamente, mudando-se constantemente as leis do generalizado  negócio, porque a Humanidade é inteligente, sensata e acabará solidária. Ou morrerá de vez.