sábado, 4 de setembro de 2010

Medolandia, de Isabel Ferreira

Numa saltada a Viseu e à Bertrand, tive nas mãos a última obra de Isabel Ferreira, titulada «Entre o Medo e a Liberdade».
Na introdução ao livro destaco esta passagem reveladora do seu conteúdo:

«…«Entre o Medo e a Liberdade» é uma história que nos é contada por dentro, pelo lado de nós onde tudo se desenha e decide. É o lado onde guardamos os nossos sonhos, as nossas mágoas, os registos e as impressões que ficam armazenadas durante toda a viagem. Os processos interiores são infinitos e, de acordo com estimulações e motivações ocultas e inconscientes, desenham a estratégia para cada momento da nossa vida».

Embora o Jorge tenha desvalorizado, aqui no blog, o «Bebé Filósofo», a verdade é que a autora, psicóloga e filósofa, conduz-nos aos primeiros tempos da criação das nossas memórias, emoções, intuições e ligações lógicas de acontecimentos, de que resulta um verdadeiro mapa mental. Este mapa vai sendo desenvolvido e actualizado ao longo da vida, num continuum que nos permite a identificação do caminho percorrido. Por isso podemos olhar para trás e reconhecermo-nos na criança “inconsciente”que fomos, no adolescente sonhador, no jovem de energia inesgotável, no homem temperado e maduro, pronto a enfrentar o declínio do vigor da juventude.
As «motivações ocultas e inconscientes» de que fala Isabel Ferreira, há muito tempo que não constituem mistério para a ciência. Freud remexeu, de uma forma sistemática, como nunca antes havia sido feito, nessas «motivações ocultas e inconscientes» e que eu só não identifico com os «mapas mentais» do «Bebé Filósofo», porque estes «mapas mentais» são muito mais abrangentes do que a restrita interpretação dada por Freud aos conteúdos da nossa mente, da nossa psique, do nosso espírito.
O que me espanta neste género de obras como as de Isabel Ferreira, Osho, Deepak Chopra e tantos outros que agora estão na berra, é o quase desprezo pelas descobertas científicas dos últimos cem anos no campo da psicologia, psico-fisiologia, neuro-ciências e biogenética. Abordam o verdadeiro e espantoso mistério, que ainda continuam a ser a mente e a consciência humana, de uma forma tão primitiva e irracional como os nossos antepassados encaravam os raios e trovões das tempestades: um tenebroso Deus os disparava sobre eles para lhes infernizar a existência.
A Isabel Ferreira fala do Senhor Medo, no país da Medolandia.

Desde o útero materno e até desde a «pré-existencia», por via da herança genética, nas células do pai e da mãe que se fundem para uma nova vida, se começa a desenhar e encher de conteúdo aquilo que será o mapa da vida de cada um de nós. Nascem aqui e, depois, serão como rio a engrossar caudal até desaguar no mar, as tais «motivações ocultas e inconscientes».
Quando o bebé abre os olhos e começa a identificar os rostos que sobre ele se debruçam, começa também a ler os sorrisos e a indiferença, o carinho e a agressividade. Interage com este novo mundo, desenvolvendo o mapa da sua vida, mesmo que não esteja consciente do que se passa. E não está. Mas “ajuíza” de uma forma mais severa e certeira do que um dia o poderá fazer como adulto consciente. É que, por paradoxal que pareça, a consciência atrapalha muito porque é o momento em que nos damos conta da nossa individualidade única e irrepetível. Normalmente nem sabemos o que nos está a acontecer, mas a verdade é que passamos a murmurar: «eu e os outros; eu e o resto do mundo». É a primeira sensação de isolamento absoluto. Se isto acontece quando estamos «felizes», isto é, em paz com o mapa interior que fomos desenhando e tudo «correu bem», poderá ser o momento mais empolgante da vida de um ser humano, porque descobre a sua grandeza sem par. Sente-se como se olhasse «do alto» o universo inteiro, porque pensa que o abarca com um simples pensamento. E é verdade, mas apenas no que respeita ao seu universo conhecido.
O primeiro instante da consciência é apenas o primeiro passo para desenvolver o definitivo “mapa da vida” que nos torna humanos.
Aconteceu na «espécie» e é necessário que a aconteça no «indivíduo».
Mas este momento do despertar da consciência humana poderá ser também o momento da tragédia, se o que vemos no mapa da nossa vida é desastre tão grande ou maior do que aquele que se passa à nossa volta. Onde, antes da consciência da minha individualidade, tudo era «certinho», «preto ou branco», «certo ou errado», agora assalta-nos a insegurança, quando ficamos face a face com um mundo a perder de vista e não conseguimos «definir». Literalmente, não sabemos onde estamos. Surge o medo, não um senhor tenebroso, misterioso e ameaçador, mas o simples fruto da consciência da nossa ignorância. É a lucidez desta descoberta que nos dará um sentimento de liberdade e não a crença, terrivelmente errada, de que somos uma dupla realidade em luta fratricida e penosa da matéria contra o espírito ou do corpo contra a alma, como se cada um de nós fosse um «eu» mais outro «eu».
Se estes dois «eu» estão separados e em luta, quem foi que os separou? Talvez um terceiro «eu».
Ou o diabo, como diziam os nossos antepassados.

Os conselhos dos autores como Isabel Ferreira poderão servir de alívio ao desassossego que nos assalta quando descobrimos quão esfarrapados estão os mapas da nossa vida. Poderão até prevenir-nos ou salvar-nos de piores desastres individuais. Mas essas obras não nos apresentam um «projecto de vida» que sirva de vestimenta e que qualquer um pode enfiar e ficar “apresentável”.
Porquê? Porque sabemos tanto acerca de um tal «projecto» como sabemos acerca das verdadeiras dimensões do Universo.
Não dá para fugir à verdadeira luta e ao desafio que nos é colocado: temos que descobrir o projecto da nossa existência, na exacta medida em que o formos SONHANDO E CONSTRUINDO.
Agora soe dizer-se: faz-se caminho, caminhando.

(também em aaacarmelitas.blodspot.com)