sábado, 23 de julho de 2011

A Raíz do Medo (E Do Sofrimento) I

"No nível máximo de rigor, nem a cor magenta, nem a flor, nem a vaca, nem tu nem eu existimos". (Citação do último parágrafo do Luís, do seu último comentário ao post anterior).

Num nível máximo de rigor, as coisas não podem ser vista com essa simplicidade. Colocas-te, Luís, na linha do existencialismo, segundo o qual nós somos pura existência, puro devir, como um fogo-de-artifício tão belo (se for bem sucedido) quão fugaz. Dramatizar esta volatidade da existência humana até à afirmação pura e simples da sua "não-existência", parece-me um exagero e uma "leitura" exclusivamente antropocêntrica da realidade. Ora nós adquirimos, pela auto consciência, a capacidade de nos "distanciarmos" da realidade e de nós mesmos, como que olhando "de fora" e poder, ainda, fazer a avaliação desse mesmo "olhar". Mas esta capacidade, e aqui é que entra a tua razão, não anula o "fogo-de-artifício", que de facto somos.
Podemos e devemos, para se rigorosos, estabelecer a diferença entre um "nada-de-ser" e "ser-por-um-instante".
O que me parece é que o budismo pretende anular o próprio instante da vida.
E se eu, ao afirmar tudo isto, ainda estou a ser antropocêntrico (porque nunca posso desprender-me do que sou), também Buda, ao negar a existência, está a afirmar a vida, por um instante que seja.
Ocorre-me trazer aqui uma passagem do livro "Cosmos" de Carl Sagan, em que ele escreve: "Os segredos da evolução são a morte e o tempo(...) Parte da resistência a Darwin e a Wallace deve-se à nossa dificuldade em imaginar a passagem dos milénios (...) O que significam 70 milhões de anos para seres que vivem um milionésimo desse tempo? Nós somos quais borboletas que esvoaçam um dia e pensam que é para sempre".

O pensamento da eternidade pode ser uma ilusão, mas ser por um dia borboleta é bem capaz de ser a realidade…

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Fechar o Circulo

"Estás a precisar de ler uns koans para "ires ao sítio"... :-D"

Se não te conhecesse bem, Luis, depois desta longa conversa sobre o budismo, iria interpretar este teu conselho como a atitude zelosa de um crente cristão a recomendar-me a leitura dos versículos da sua bíblia, para eu reencontrar os caminhos da fé.
Nesta altura da nossa longa conversa convém fazermos um ponto da situação e pensar no que vamos dizer e fazer a seguir.
A mim apetece-me dizer que Siddharta Gautama terá chegado a "buda" , o ideal que se propôs para a sua vida, e depois morreu, por volta dos oitenta anos, numa data que os historiadores não conseguem determinar, mas terá sido entre o ano 500 e 300 antes da era cristã.
Resumindo: nasceu, viveu de acordo com o pensamento que foi elaborando e morreu como qualquer humano de ontem e de hoje.
Eu tenho um prazer genuíno em conhecer os factos da história, mesmo aqueles que foram terríveis e potencialmente desmoralizadores. Como se estivesse a ver um filme de amor ou de terror. A alegria consiste em conhecer a verdade dos factos. E nós vivemos num tempo em que os avanços científicos nos permitem "escavar" essa verdade como nunca antes fora possível.
A esta luz nova ou perspectiva nova sobre a vida e sobre o universo, onde se percebe claramente o encadeamento dos factos e a razão de tais desenvolvimentos, também adquirimos a consciência aguda de quão parciais são ainda as nossas "conquistas". E é esta consciência que nos torna tão diferentes dos nossos ancestrais, que vamos relendo e amando nas páginas magníficas da história que eles escreveram. A história das suas vidas.
Constatamos que, sistematicamente, eles fecharam o círculo do seu pensamento e do seu sonho, convencidos de que haviam encontrado a "teoria final" ou, como gostam de dizer os físicos teóricos no seu campo de pesquisa, a "Teoria de Tudo".
E assim nos legaram os seus "evangelhos" e as instruçóes precisas para os concretizar.
O historiador das religiões que eu tenho seguido nesta abordagem ao budismo, o já referido Karl- Heinz Ohlig, resume-o desta forma: "O budismo também adoptou a lei do "karma", o "samsara", o objectivo soteriológico da auto-anulação e o caminho auto-salvífico da não-ligação à realidade plural. A salvação baseia-se no reconhecimento, tal como nos "Upanishades", e a ignorância tem de ser superada".

Esta é a história, o sonho de felicidade e o pensamento concretizador do budismo, que terá sido do buda Gautama. Ou, mais precisamente, de Gautama, o Buda. Tal como veio a dizer-se, no cristianismo, Jesus, o Cristo. Num caso e noutro são títulos honoríficos que os identificam com a doutrina-pensamento que lhes é atribuída, uma vez que nem um nem outro escreveram o que pensaram e ensinaram.
O historiador não detém o seu olhasr e o seu afecto sobre uma história em particular, mas sobre todas e cada uma, como peças de uma História incrivelmente mais abrangente. E esta "abrangência" possivel é a nossa novíssima conquista.
Quando, fascinados pela beleza das histórias e realizações dos nossos avós, nos prendemos ao passado tão afectivamente que os queremos imitar em total fidelidade, acabamos por assumir um comportamento anacrónico e desfasado da realidade. Justamente merecedor de crítica.
Imagina, Luis, Siza Vieira rendido à beleza arquitectónica do mosteiro da Batalha ou dos Jerónimos, e consagrar a sua vida a um projecto tal e qual.
Pensa na perda enorme para a humanidade, se os gigantes da ciência que nos carregam aos ombros, se tivessem conformado às “teorias perfeitas” dos que os precederam.
Há uma lição que deve ser retirada do budismo: o reconhecimento em profundidade da nossa situação desgraçada e a superação do sofrimento que dela decorre, não se resolve com um movimento até ao íntimo da nossa mente ou à realidade intrínseca das coisas (seja l’a o que isso for).
Porque hoje sabemos que qualquer “viagem” é apenas mais uma etapa de um longo, longo percurso.
A um novo paradigma, um novo pensamento.
“Teoria Final”? “Teoria de Tudo”? Nem na física, quanto mais na metafísica…