quarta-feira, 9 de junho de 2010

Enfrentar a Fatalidade

A partir do momento em que o homem atingiu, na sua evolução, o patamar da consciência nasceram todos os “fatalismos”. A razão é simples: vê uma História que começou sem ele –ou a sua consciência- e essa mesma História vai continuar sem ele e sem a sua consciência.
Estes sãos os factos e não vale a pena escamoteá-los. Se há vida antes de mim e isso é absolutamente verdade, eu não estava lá e a vida continuará depois de mim e eu não vou estar lá. O que vem para além desta fria observação é obra da fé dos homens, fruto dos seus anseios de mais vida e mais felicidade. E este aspecto da «felicidade» é fundamental, porque não estou a imaginar alguém a querer prolongar uma dolorosa e irremediável agonia por uma eternidade. Para ser infeliz, o mínimo que se pode desejar é que tal agonia seja curta.
Porém, o que o homem deseja mesmo é superar a fatalidade ou a agonia e continuar o caminho rumo à felicidade. È um sentimento que pode, perfeitamente, ter as suas raízes nos “mecanismos”da génese da própria vida. O milagre da consciência vem apenas lançar luz sobre “o que se está a passar”e o homem, encantado com o “fenómeno”, empolga-se e quer mais e mais vida. Porém, alguns indivíduos, que não a Humanidade, inconformados e amargurados, chegam a amaldiçoar o dia em que tomaram consciência da sua augusta mas tão precária condição. Provar o milagre da vida por um tão curto tempo…
São estes que encaram tanto o nascimento como a morte, como uma fatalidade, com toda a carga negativa que lhe está associada.
A História prova à saciedade que o “grosso” da Humanidade não desiste nunca, não cedendo a fatalismos. Pelo contrário, no seu conjunto, empreendeu uma caminhada heróica que nenhuma tragédia fez parar. E quando as forças começam a faltar, agarra-se a uma fé cega num destino de felicidade, não se importando de sacrificar a razão e a lógica ao desejo incontido de um futuro com mais e melhor vida. Bem podemos dizer que a humanidade tem por horizonte não o «inferno» mas o «céu». Como quem diz, o triunfo da vida e não a vitória da morte.
É tempo de todos colocarmos os pés bem assentes no chão. A ciência conheceu tais desenvolvimentos que já não permite mais devaneios inconsequentes nem a fé cega dos nossos avós. Eles estavam «encostados à parede», porque o mundo acabava mesmo ali, um pouco acima das nuvens ou mais abaixo, no mar profundo. Mas a ciência dos últimos duzentos anos abriu horizontes inimagináveis. Para onde quer que olhe, o homem já não vê outro muro que não seja o das suas limitações do momento presente. Há quem pergunte, actualmente, se a ciência não terá atingido os seus limites. A resposta tem sido: não! Aliás, recordam os defensores do “não” que, em épocas anteriores, a mesma dúvida pairou nas mentes. E foi o que se viu…
Na minha modesta opinião há dois factos que terão de ser considerados à partida. Primeiro, a unidade intrínseca do ser humano. Com isto quero dizer que o futuro do homem, «a mais vida com que se sonha», será tanto para o seu corpo como para o seu espírito. Definitivamente, digo não aos espíritos «incarnados» ou «desincarnados». Aceito o aparente paradoxo de a «matéria» que somos gerar a «consciência» que também somos. Aceito que «eu» não fazia parte da História, antes de nascer, e não faço a mínima ideia do que acontece a esta criação maravilhosa que «eu» sou, quando se desfizer o suporte que a tornou possível. Posso adiantar que ficaria feliz da vida se «alguém» ou «alguma coisa» lhe deitasse a mão e me juntasse aos amores que partiram antes de mim, para continuar a aventura, mesmo que noutra dimensão.
É apenas um sonho. O que temos pela frente é muito trabalho dedicado, para prolongar a existência deste corpo e desta consciência e com qualidade de vida.

O segundo facto a considerar diz respeito ao modo como abordamos a questão do conhecimento humano. O nosso conhecimento não se reduz a meras «convenções» sem qualquer contacto e correspondência com a verdade intrínseca da realidade. Nisto eu sou «aristotélico». Os nossos sentidos proporcionam-nos «contactos» intrinsecamente verdadeiros com as coisas, as sensações, e estas são transformadas em autênticos mapas, pela nossa mente. Estes mapas vão servir de guia para não nos perdermos no emaranhado impressionante de estradas e carreirinhos da realidade. «Por aqui já passei; este caminho vai dar àquele; se for por aqui é mais perto; aquela estrada desce muito e está cheia de curvas; mas dá para ir por um atalho; ali faz-se uma ponte; ali um túnel». Até se mudar a própria a paisagem…
Sempre presentes os sentidos, a razão e a Senhora Realidade.
E que Senhora! Uma Diva mesmo! Inacessível a um pobretanas e feio mas que a adora. Pobre filósofo, que terá de viver a vida inteira de um amor platónico. Mas o “sentimento” é real, tão real como quem o tem. Platão esquecera este pormenor mas o seu discípulo Aristóteles veio lembrar.
Aquilo que a gente «sente», a «paixão», aparentemente a parte pobre do processo cognitivo, afinal é o primeiro relacionamento com a Realidade. É o primeiro «choque» e não pode ser posto de lado quando elaboramos os mapas mentais para nos orientarmos na floresta da vida. Porque, se o fizermos, às tantas, já nem sabemos do que andamos à procura e paramos, entretidos a fazer contas de somar ou cálculos elaboradíssimos na construção de pontes e estradas, esquecidos de como tudo começou. E, sobretudo, do objecto da nossa paixão. Ou do próprio apaixonado, resultando daí um filósofo oco, um cientista de cabeça perdida e um pregador de mundos imaginários.

Para uma boa teoria do conhecimento: no princípio era a paixão.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Fatal Como O Destino

Vou responder à questão levantada pelo meu querido amigo Zé Moreira nesta “postagem” em vez de o fazer na “caixa de comentários”, porque o assunto merece ser destacado.
Para surpresa da generalidade das pessoas, a teologia cristã é contrária à ideia de fatalismo. Isto quer dizer que ninguém nasce com o destino traçado. Nem Judas, apesar de ter sido imprescindível a sua traição ao desígnio da Obra da Redenção.
O que surpreende ainda mais é que esta doutrina da teologia cristã (estou a referir-me, sempre, à teologia cristã-católica) penetrou no pensamento da generalidade dos crentes e cada um se sente senhor e responsável pelo seu destino. Se falhar o objectivo da sua realização e felicidade a culpa é inteiramente sua. E carrega toda a vida o peso dessa responsabilidade. É dramático e empolgante.
Estamos perante mais um dos muitos mistérios da fé cristã e este afronta directamente a nossa razão. Com efeito, se há um Criador, terá de haver um desígnio e nós fomos concebidos para realizar esse desígnio. Não há como fugir ao destino. Assim, Judas não podia deixar de trair o Redentor da Humanidade. Estava escrito.
E se assim é, onde está a liberdade de escolha? Como se pode culpar e condenar alguém predestinado à traição?
A teologia cristã concilia estes “contrários”, desígnio e liberdade, de uma forma que me parece brilhante. Literalmente, os teólogos cristãos resolvem a situação paradoxal, transcendendo a racionalidade e permanecendo com os pés bem assentes na terra. E matam dois coelhos com uma só cajadada: nem o Deus em que acreditam é uma entidade monolítica nem o homem, sua imagem e semelhança, é uma realidade individualizada. Esta verdade da doutrina cristã é afirmada na alteridade absoluta de Deus em relação ao Homem e deste em relação a Deus.
No discurso teológico dos cristãos, o monolitismo divino é rompido na proclamação de um conjunto de «pessoas divinas», no dogma da «Santíssima Trindade».
Embora não sendo crente cristão, aceitando e professando esta fé como «verdade revelada» a um grupo de homens privilegiados, considero, no entanto, espantosa esta teologia. Para mim é do mais belo e do mais profundo de tudo o que alguma vez o pensamento e o sentimento humano conceberam acerca da Divindade. E fizeram-no, conscientemente ou não, a partir da mais clara realidade do nosso dia a dia.
Quem é pai e mãe e filho ou filha, e somos todos, vive o mistério da alteridade absoluta. Pensa, meu caro Zé, que a vossa filha, sendo “genes dos vossos genes”, teus e da Romy, é uma personalidade totalmente outra. O seu destino será escolhido por ela, a não ser que, despoticamente interfiram e aniquilem a sua personalidade ou, no que vem a dar o mesmo, impeçam que ela se desenvolva.
O destino da vossa filha não está nas vossas mãos, apesar de tudo o que lhe deram desde o primeiro instante.
Também poderíamos dizer que matar alguém não é matar a personalidade desse alguém. Nesse sentido diríamos que Fernando Pessoa “está vivo” e que a imortalidade é um atributo da “pessoa”. Mas não vou por aí, agora.
Prefiro recordar o que dizia o Luís, aqui na Laje Negra: vivemos com um olho no finito e outro no infinito. O finito é a nossa indiscutível paternidade e filiação e o infinito é o universo novo que somos, saído dos genes dos nossos pais.
É claro que podemos especular, recuando até perguntar quem gerou «o pai do avô do bisavô da minha avó», prosseguindo até à derradeira pergunta «quem criou o Criador». Parece-me, no entanto, um exercício pouco profícuo e pouco mais vale que passar a vida a dizer 2+2=4. Conta certeira, em absoluto, mas sem que o persistente contador se tenha um dia lembrado de perguntar «2 quê?». Porque está-se mesmo a ver que dois Zé Moreira + dois nunca serão quatro porque só existe um, o de Marrancos de Braga e mais nenhum.
Como quem diz: a lógica da razão não serve para superar os paradoxos da vida e desvendar os seus mistérios.

domingo, 6 de junho de 2010

A REVELAÇÃO DIVINA ou Conhecer o resultado antes do jogo

O despertar da consciência humana, ao mesmo tempo que abriu ao homem o caminho do conhecimento, deixou-o face a uma cadeia de problemas sem solução, até chegar ao tal impasse que referi na postagem anterior.
O belíssima narrativa bíblica do mito de Adão e Eva são a velhinha e esclarecedora demonstração do que afirmo.
Vivia o Homem feliz sobre a Terra, autentico paraíso de harmonia entre todos os seres que nela habitavam, até ao dia em que os «pais» da Humanidade provaram do fruto proibido (que nada tem a ver com a sexualidade mas com a consciência) «da árvore do conhecimento do bem e do mal». Diz a narrativa que logo que cometeram o acto de desobediência os olhos dos nossos «pais» se abriram e «descobriram que estavam nus».
De uma forma expressiva, poética e profundamente inteligente o «escritor sagrado» põe em evidência o que é distintivo no ser humano: a auto-consciência. Só o Homem «descobre» que está nu ( o macaco não) e só o Homem tem consciência de que cometeu uma infracção.
Resumo desta linda história: o Homem tramou-se porque quis saber demais e sabe muito bem o disparate que fez....

Quando era menino, aprendi na catequese a declinar as virtudes «teologais» que são três: fé, esperança e caridade (amor). Qualquer cristão que vá à missa ao Domingo, se não for para lá dormir, ouve, todos os anos. S.Paulo afirmar, numa das suas epístolas, que com a morte cessam a fé e a esperança e «só o amor permanece». Lembro-me muito bem de que o sr abade aqui de Balugães ensinava, expressamente, isto mesmo às crianças da catequese, quando falava das «virtudes teologais».
Penso que quase todos os que aprenderam esta catequese nunca levaram muito a sério este ensinamento do sr abade porque, se o tivessem feito, ficariam muito intrigados. Então a fé e a esperança são algo de transitório? São «valores relativos»?
No entanto, é o que consta da catequese cristã.
E são valores tão “relativos”, que uma série de personalidades bíblicas foram, efectivamente, dispensadas destas virtudes ainda em vida. Com efeito, um punhado (largo) de privilegiados falaram com Deus e receberam, directamente e antecipadamente, a informação que o comum dos mortais só terá depois da morte. É o que a teologia cristã designa por «Revelação».
Estranhamente, aqueles que pregam a fé e a esperança aos crentes, foram dispensados dessas mesmas virtudes.
S.Paulo, o apóstolo dos apóstolos para os cristãos, é bem claro: «…o evangelho por mim anunciado não é segundo o homem, pois eu não o recebi nem aprendi de algum homem, mas por revelação de Jesus Cristo» (carta aos Gálatas cap.I , 11-12).
O que diz S.Paulo de si mesmo acerca da autoridade com que fala com “conhecimento de causa”é extensivo a todos os autores sagrados, de todas as religiões. Todos, de uma forma ou de outra, falaram com Deus ou mensageiros divinos. O conteúdo das suas mensagens, que para os crentes passa a ser motivo de fé e de esperança, para os autores sagrados sempre foi o resultado final do jogo da vida.

Quem está «de fora», como eu, deste jogo das revelações divinas não pode deixar de reparar na situação estranhíssima de uns saberem o resultado final do jogo da vida e outros terem de esperar pelo “apito final” para saber se acertaram no prognóstico ou, no caso de uma fé total e cega, confirmar que os “reveladores” falaram a verdade.

Porém, o que ainda para mim é mais estranho nesta questão das «revelações divinas» é a ideia que se faz passar de que a vida é um jogo já jogado, de que alguns conhecem todas as peripécias desde o primeiro instante e os outros todos são mantidos na ignorância. Vá-se lá saber porquê.
Para mim, a vida, em vez de um jogo visto como que em diferido na esperança e na fé, aparece-me, antes, como uma epopeia grandiosa, como um jogo a ser jogado, no qual lutamos por um resultado final vitorioso. Imprevisível, é verdade, mas nisso consiste a beleza do jogo e o seu fascínio. E talvez radique aqui o verdadeiro sentido da liberdade humana.
A crença numa revelação divina feita a um punhado de privilegiados, essa sim, parece-me absurda, sem ponta por onde se lhe pegue.
Penso eu de que…
Mas será que os teólogos, especialmente os teólogos cristãos da actualidade, têm este «conceito» de revelação divina? Sei que estão, de facto, a ir por outro caminho, algo do género como «a revelação faz-se na História». Como a História não acabou, a «revelação» não pode estar completa. Mas a grande massa dos crentes não conhece esta deriva interessantíssima.
Quase herética.
Heterodoxa mesmo.