domingo, 26 de setembro de 2010

O Tempo das Fadas

(Texto que publiquei no blog aaacarmelitas)

Repesco o último parágrafo do texto sobre as crianças índigo, que o Intruso nos trouxe:

«Portanto, quando o meu filho faz as suas coisas, ele ensinou a todos uma lição silenciosa, incluindo a mim mesmo. Eles vivem de forma intensa e têm um sentimento de "desejar estar aqui" e ficam surpreendidos quando os outros não compartilham isso».

Todos sabemos, por experiência própria, que a infância é vivida como se estivéssemos a pairar sobre as nuvens, a não ser que uma dura realidade ou até o infortúnio obrigue a um precoce e terrível despertar, que leve a sentir, “logo à nascença”, a dureza do chão que se trilha. Se isto acontece, costuma dizer-se, com justeza, que nos tornamos adultos antes do tempo.
Uma infância normal, despreocupada, deixa a criança imersa no seu mundo encantado, onde o Pai Natal é tão verdadeiro como o avô. E já todos vimos imagens de crianças, em cenários de catástrofe, tão alheadas da tragédia à sua volta, quanto o cachorrinho da família. É a «inconsciência» dos pequeninos que, indiferentes ao que sucede em seu redor, deixam-se levar pelo espontâneo impulso vital.

Não se tratando de uma simples metáfora, o texto do Intruso fala-nos da vida das crianças como uma «lição silenciosa» e que nós, deduzo eu, devemos reter. E se assim é, o autor, seja ele quem for, parece não considerar esta fase da vida de um ser humano como uma etapa transitória, fazendo passar a ideia de que o ideal seria regredir até ao sentimento infantil deleitoso, espontâneo, despreocupado e desligado do turbilhão da realidade.
Posso estar enganado, mas penso que apontar o regresso à muito ténue consciência da nossa infância é apontar o caminho do alheamento da dura realidade de um crescimento em sofrimento. É fazer cair no engano adultos que se irão dedicar a uma ascese para reencontrar a «paz perdida», como se a feliz "inconsciência" da nossa infância fosse o clímax da existência e da realização individual. Nesse caso, para quê crescer? Para quê ir mais além da infância da vida?
O que nos torna diferentes dos outros seres vivos e nos confere a grandeza de espírito é a experiência e a consciência de uma dolorosa caminhada, as mesmíssimas experiência e consciência que desfazem o encantamento dos primeiros anos da vida. Não será, por certo e apenas, uma experiência restringida à minha individualidade, mas uma verdadeira, abrangente e aguda consciência de ser quem somos e como somos enquanto humanidade.
Qualquer programa de ascese que se idealize terá de aceitar a naturalíssima realidade evolutiva e olhar a nossa vida como um «continuum» de aperfeiçoamento e não de degradação. Mas a perspectiva que nos traz o texto do Intruso parece ser no sentido inverso e um apelo a que nos fixemos na “maravilhosa infância”. Ingénua infância, direi eu.
O adulto também poderá afirmar «desejo estar aqui», mas perfeitamente consciente do caminho percorrido desde os primeiros passos e do novo patamar a que chegou. E tal afirmação será a prova da sua maturidade.
Um olhar reiteradamente nostálgico sobre o passado poderá indiciar a frustração pela vida presente e revelar que muita coisa, em nós, terá de ser revista. E o “remédio” não será a fuga da realidade que eu, talvez injustamente, entendo que está na base da doutrina dos pregadores da Nova Era, como já estava na filosofia budista. Uns e outros sonham com o retorno a um «paraíso perdido» ou com a imersão na «energia cósmica», pondo termo ao degredo que é a vida presente. Degredo ou compasso de espera para outra realidade. Como se pudéssemos considerar um «compasso de espera», o tempo que os construtores consomem na criação de uma catedral!

Existe um pensamento alternativo, bem mais aliciante: não há regresso ao que «antes eramos», porque ninguém era coisa nenhuma. Cada um será o que fizer de si próprio «aqui e agora». Não há predestinação para o sucesso ou insucesso (perdição ou salvação). Não há retorno à vida ou ao passado, para recomeçar, numa nova oportunidade.
E é também a perspectiva do cristianismo que vê a ressurreição do homem e do universo (ambos serão transformados) como a perfeição definitiva e não recomeço de mais um ciclo de vida (reincarnação).
Na teologia cristã não existem dois mundos em paralelo porque, pela morte e ressurreição, «este mundo» se transforma num «outro mundo», que até à ressurreição existe apenas potenciado no próprio acto da Criação e, consequentemente, nos actos dos homens, tornados responsáveis pelo seu destino.
É um osso bem duro de roer, esta doutrina. Senão vejamos: no plano individual, a morte de cada um deveria ser o momento da ressurreição-transformação. E se esta ressurreição é o culminar da caminhada e da perfeição do homem, como pode isso ser verdade se, ao morrer, todos ficam bem longe de tal perfeição? Talvez o problema se resolva no caminho do purgatório. Mas, admitindo o purgatório, está a admitir-se um mundo paralelo, habitado por seres desincarnados: as almas. É uma saída airosa e engenhosa, mas contradiz e nega um dos dogmas fundamentais que é a ressurreição cristã do homem integral, corpo-espirito.
Não há como evitar: o crente vive da fé.

Mas que é tudo isto tem a ver com o tema das crianças? Muito. O destino do homem é crescer a vida inteira em busca de uma perfeição com que, manifestamente, não nasceu. E morre sem lá chegar, o que nos faz sentir que somos uma obra sempre inacabada.
Desconfortável? Sem dúvida, mas parafraseando o professor Agostinho da Silva, no dia em que alguém pensar que tem a solução para todos os problemas, nesse dia «fecha as portas do futuro» e «abre as da inquisição»…