segunda-feira, 11 de outubro de 2010

"Desregular" para Harmonizar

“Desregular” para Harmonizar


De facto «eles» já não comem tudo. Pelo menos já não nos comem as papas em cima da cabeça, como diz o ditado.
A consciência cívica, em crescendo, veio para ficar e as reivindicações das pessoas, também elas em crescendo, aí estão para o confirmar. Depois de uma vida mais longa, reivindica-se uma velhice de qualidade; como depois da democracia, se reivindica uma democracia mais aprofundada. Subindo um degrau na escala do crescimento, aspira-se a subir o degrau seguinte.
Isto assusta os que estão bem ou razoavelmente bem instalados (os tais que «comem tudo e não deixam nada»), talvez com medo que o bolo não chegue para todos. O bolo da oportunidade da formação, da excelência da saúde, do bem-estar, da felicidade.
Curioso é que, não raro, vamos encontrar do mesmo lado da trincheira os tais que querem «comer tudo» e os que falam do homem como ser único e irrepetível.
Onde é que está a dissonância?
Acontece que os defensores de um humanismo radical, e ainda bem que o são, esquecem, frequentemente, por conveniência ou outro motivo qualquer, que todos os seres humanos, e não só «eles» ou uma certa elite, são de facto únicos e irrepetíveis e, como tal, credores da mais alta distinção. E isso vem a lume, às vezes de forma brutal, quando a sociedade é confrontada e tem de pronunciar-se sobre as chamadas «realidades fracturantes». Entre nós, o exemplo mais recente foi a discussão em torno do casamento entre homossexuais.
Não adianta remar contra a maré, porque os sinais dos tempos são bem claros no prenúncio de um Homem Novo que começa a fazer impor, em todos os domínios e por todo o lado, a sua nobilíssima condição de ser único e irrepetível, porque dela está cada vez mais consciente.

Únicos e irrepetíveis pela biologia, pela psique e pela consciência que vão construindo.

Este autêntico "despertar dos mágicos" está a provocar verdadeiras convulsões nas sociedades ditas tradicionais. A mulher ocupa o lugar a que tem direito, como o homem já teve direito, num passado mais distante, a reivindicar a liberdade (ainda não há muitas décadas era legal a escravatura entre os mais «civilizados» povos e o racismo era letra de lei); as crianças e os idosos ganharam direito de cidadania; os casais ganharam direito ao divórcio, em casamentos falhados ou perversos que não respeitem a dignidade dos esposos; os deficientes lutam pelos seus espaços; a orientação sexual de cada um vai conseguindo respeito e direitos para a sua diferença; as opções religiosas e filosóficas são respeitadas e propostas como um direito inalienável de cada pessoa humana...
O mundo clama, neste preciso momento, pela libertação do chinês Nobel da Paz 2010 e da Iraniana (adúltera, diz o Corão) condenada à lapidação. Sinal dos novos tempos.
Hoje, como nunca, as pessoas exigem ser respeitadas no interior das instituições em que o homem se organiza para viver em sociedade. E as fronteiras cavadas entre as nações já não são obstáculo ao apelo para a dignificação da pessoa humana.
Em lugar da uniformização de todos pela lei, começa a emergir a harmonização entre todos, pelo respeito de cada pessoa na sua especificidade. Até já se fala no projecto dos fármacos personalizados.
Num mundo cada vez mais globalizado e de produção em série, este assomo de dignidade individual funciona como precioso e poderoso antídoto, apesar de provocar um tremendo sobressalto nas mentes «conservadoras», porque «desregula» o que sempre foi considerado «lei divina» ou «lei natural» e, como tal, intocáveis. A dignidade para todos e cada um está para além desses padrões sagrados e intocáveis. Sagrado mesmo, só a pessoa consciente e única.
E neste sentido já se ouve, um pouco por todo o lado, aquilo que nunca deveria ter sido deixado de proclamar, e que há muitos séculos foi evangelizado: o “sábado” foi feito para o homem e não o homem para o “sábado”. Modernamente diz-se: PRIMEIRO ESTÃO AS PESSOAS. E agora, cientificamente, acrescenta-se: cada uma delas ÚNICA E IRREPETIVEL.
Lá se foi, de vez, o «sangue azul» para o galheiro, mais a «raça», o «sexo forte» e outras tralhas dos profetas da sub-condição humana...dos outros!
E aqui ocorre-me recordar outra das maravilhas do pensamento cristão: «A lei mata e o espírito dá a vida».
A uniformização pela lei postula, por assim dizer, a irresponsabilização do indivíduo face ao seu destino. E, desse modo, mata mesmo, reduzindo o homem a um autómato sem futuro, que responde perante uma lei e não perante a consciência da sua dignidade e da dignidade dos outros.
Seria tão fácil, em teoria, criar uma sociedade de autómatos, impondo leis rígidas e universais, a que todos e cada um se sujeitassem. Mas o desafio que temos pela frente é infinitamente mais aliciante, que é fazer emergir a pessoa humana em todo o esplendor das suas capacidades. Que é o mesmo que dizer, criar uma sociedade baseada na harmonia de muitos (sons e pessoas) em vez de uma sociedade projectada para a fusão de todos num monstruoso grito monocórdico, resultante de uma “regulação” até ao absurdo.
Os cristãos acreditam numa Divindade plural (Trindade, dizem eles) e pensam uma sociedade à sua imagem e semelhança. Acompanho-os apenas até às portas do céu da sua fé porque, para me fazer sonhar com o infinito, já me basta o universo como ele é e o mundo que nós somos.


(publicado, hoje, in aaacarmelitas)