quinta-feira, 7 de julho de 2011

A Raiz Do Mal

Não leiam a palavra «mal» no sentido moralista. Aliás, eu fujo do moralismo como o diabo da cruz, porque o moralismo é um mar de equívocos e os moralistas medram à sombra da própria ignorância ou da ignorância alheia, quando não se aproveitam mesmo, oportunisticamente, daqueles que nunca tiveram a sorte de uma escola. A propósito, contava-me, há dias, a minha filha mais nova uma conversa que tivera em Londres com uma vegetariana compulsiva, por força da religião que professava. Tratava-se de uma caso em que o “mal” moralista era de carácter religioso e colava-se ao consumo de alimentos. A minha filha explicou à sua “piedosa” interlocutora que o “mal” não está naquilo que comemos e que, por exemplo, o mosquito da malária, quando pica uma pessoa, não faz uma maldade capaz de matar. A inocente criatura está simplesmente a lutar pela sobrevivência “como nós as duas quando vamos ao trabalho”. Ora acontece que o mosquito se alimenta de sangue e não de frutas…
E sem culpa nenhuma!!!
O erro fundamental dos moralistas é pensarem que nós somos um espírito que incarnou e não a materialidade animal que evolui para a espiritualidade.
Esta capacidade de evolução é real, mas exercemo-la sem nunca nos desligarmos da matriz animal. Daí a nossa frustração perante a paradoxal realidade humana: comportamentos “animalescos” à mistura com as nobres realizações do conhecimento, da beleza, do amor e ânsias de eternidade.
Hoje li a crónica habitual do Manuel António Pina no JN, onde ele aponta o dedo ao verdadeiro tsunami da “maldade humana” que nos submerge. É a pura realidade. Mas eu já estou cansado dos diagnósticos da doença e acabei, frustrado, a leitura desta crónica, igual a milhentas outras que se limitam a sinalizar a desgraça.
Foram séculos ou milénios de pregação contra a maldade, chegando-se ao ponto de inventar o “Deus do Mal”, por falta de explicação aceitável para tanta maldade. Nem promessas de paraísos nem ameaças de infernos bastaram para, ao menos, diminuir a maldade. Avançou e avança como avalanche incontrolável, perante a impotência dos deuses e dos homens.
Penso que este sentimento de impotência perante o mal e a maldade tem uma raiz cultural, da qual nos temos que libertar.
Por mais que ofenda o orgulho de quem se imagina um puro espírito encarcerado num corpo tão frágil como um vaso de argila, está na hora de reconhecer que somos, primeirissimamente, iguais ao mosquito que mata para se alimentar e sobreviver. Toda a sofisticação de meios que usamos para atingir o mesmo fim, sobreviver, decorrente da nossa inteligência e da mente consciente, não anula a nossa primitiva condição. E é sobre esta condição de “mosquito sofisticado” que temos de actuar, se queremos superar-nos para o sonho, para a beleza, para o amor e para a imortalidade.
Mas continuamos a “dizer” tudo ao contrário, repetindo o milenar sermão moralista.
Escrevi “dizer” e não “fazer”, porque há um trabalho extraordinário que vem sendo feito metodicamente pelo menos há quatrocentos anos, não por pregadores de sermões inflamados, mas pelos homens da ciência que apontaram o machado do conhecimento à “raiz do mal”.
Não é a ira de uma divindade que manda o raio, o terramoto, a peste ou guerra. Não é uma divindade perversa que instiga o ódio, a ganância, a inveja e a mentira. Não é o “pecado” dos pais que faz nascer o filho cego, aleijado ou com tendências suicidas ou assassinas.
Todo este rio imenso de “maldades” procede da nossa condição e do universo donde emergimos.
Os pregadores de sermões, antes, por mera ignorância, hoje, “quase” por maldade, ora culpam “Deus”, ora culpam o “Homem”.
Sem lhes dar cavaco, os homens da ciência lançaram as culpas para o caixote das velharias e foram directos às causas das nossas desventuras.
Nascer mais saudável, nesta era do conhecimento, pode ser o primeiro passo para uma nova era, a do homem espiritual. Porque “o que nasce torto, tarde e mal se endireita”.
E nós temos estado a nascer “ao deus dará”.
Em vez de lamúrias e de apontar o dedo à “maldade humana”, aposte-se a sério no conhecimento e nas ciências da vida.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Indiferença Desconcertante V

Contemplação

Sonho de olhos abertos, caminhando
Não entre as formas já e as aparências,
Mas vendo a face imóvel das essências,
Entre ideias e espíritos pairando...

Que é o mundo ante mim? Fumo ondeando,
Visões sem ser, fragmentos de existências...
Uma névoa de enganos e impotências
Sobre vácuo insondável rastejando...

E d'entre a névoa e a sombra universais
Só me chega um murmúrio, feito de ais...
É a queixa, o profundíssimo gemido

Das coisas, que procuram cegamente
Na sua noite e dolorosamente
Outra luz, outro fim só pressentido...

Antero de Quental, in "Sonetos"

Indiferença Desconcertante IV

Solemnia Verba

Disse ao meu coração: Olha por quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, desta altura, fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos...

Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E a noite, onde foi luz a Primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!

Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do pensar tornado crente,

Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se isto é vida,
Nem foi demais o desengano e a dor.

Antero de Quental, in "Sonetos"