sexta-feira, 16 de março de 2012

A Triplice Dimensão De Mim

Retornando à pequena história do Pe Anselmo que abre a postagem anterior, claramente ela sugere-nos e revela todo o poder intrigante da mente humana que nos "decompõe" numa tríplice realidade: eu-corpo, eu-personalidade e eu-contemplação (ou reflexão). Esta "decomposição" não é mais que uma simulação de um facto pela nossa mente consciente, um "não-facto", pois a decomposição efectiva do conjunto solidário daquela trilogia é a morte. De facto, no acontecimento da morte dissolve-se o eu-corpo, o eu-personalidade e o eu-contemplativo (reflexivo). Ou não será assim?
Alimenta-se a dúvida, desde há milénios. Talvez, mais do que uma dúvida, seja a expressão do inconformismo de quem (o eu-contemplativo) se viu nascer, crescer e tornar-se alguém (personalidade). Como pode, pergunta o eu-contemplativo, "tudo" acabar em "nada"? E o "tudo" é o corpo, a personalidade, o próprio acto de reflectir.
Como nunca tivemos resposta conclusiva, considerando o enigma do universo que somos, pensou-se, sonhou-se ou simplesmente imaginou-se uma solução para preservar a identidade individual: a imortalidade , a ressurreição, a reencarnação.
Numa época pre-cientifica, estas respostas eram suficientes e chegavam a arrebatar a mente humana. Com o advento da era científica persistiu a esperança de escapar à dissolução da pessoa humana, invocando a capacidade misteriosa da mente em contemplar o nascimento, a vida experienciada e a pre-visão da própria morte. Mas acontece que a neuro ciência demonstra cada vez melhor que o processo mental que nos permite recuar a um "antes da vida" e avançar até um "depois da morte", resulta da actividade essencial e indissociável do corpo e da mente, condicionando-se mutuamente. É um enigma por desvendar, a forma como este processo se desenrola "de baixo", "para cima", ou seja, da não-vida para a vida até à contemplação e à reflexão.
Mas por ser enigmático, nada justifica supor a autonomia de um "eu-contemplativo" em relação à sua "humilde" origem.
Estou convencido que, por muitos anos ainda, os homens não consigam viver sem a expectativa da imortalidade do espírito, da ressurreiçâo e da reencarnação. Elas vão continuar a garantir, pela fé, cada uma a seu modo, a preservação bem sucedida da identidade.
Haverá alguma vantagem em colocar em causa estas expectativas felizes, desassossegando as pessoas?
Respondendo de uma forma simples eu diria que não foi menor o desassossego quando a ciência revolucionou o mundo geocêntrico, criacionista e antropocentrico.
Dói, mas passa, acabando sempre por descobrir que amamos tanto a verdade, quanto o sonho e a esperança. De modo que a humanidade, como um todo, vai continuar a sonhar e a procurar a verdade.
E depois, aqueles que consideram como falaciosas as respostas "tradicionais" da pre-ciência, que solução prõem para a preservação da identidade como garante da felicidade?
Em definitivo, nenhuma, na verdade. Digamos que, até hoje, o máximo que podem oferecer é uma maior e mais sadia longevidade, vivida no sonho possível e na esperança possível.
Quem se agarra, até hoje, a uma transcendencia que preserve, de algum modo, a sua identidade, significa que o homem da era científica também não aceita ter o mesmo destino de uma estrela, de uma planta ou de um animal. Apesar disso, e dando mostras de um "homem de pouca fé", no dia a dia investe como sabe e pode para preservar a integridade do seu corpo, da sua personalidade, da sua mente reflexiva.
A mais verdadeira das orações é aquela que todos rezamos nos momentos mais críticos: "enquanto há vida, há esperança". E, naturalmente, estamos a falar da única vida que conhecemos e experienciamos.