sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Consciencia, Sofrimento e Criatividade

Mais uma vez o meu comentário ao Luís virou "homilia" e tive de o puxar para uma postagem. O que vale é que estou em minha casa...

Voltando ao teu comentário anterior, quando dizes que os actores humanos sofrem menos ao tomarem consciência (iluminação) de que são actores e espectadores da sua própria vida, a mim parece-me que é precisamente o contrário. A iluminação da consciência é fonte de inquietação e tornou-se um autentico motor de criatividade. Um animal apavora-se ao «pressentir» o ataque iminente do predador. Nós conservamos intactos os automatismos de reacção perante o perigo, herdados dos nossos longínquos antepassados. A consciência humana que desenvolvemos, amplia e antecipa perigos. E o perigo maior é a consciência da inevitabilidade da morte. O contrapeso desta carga negativa é a memória das alegrias e a consciência da felicidade presente e da felicidade perspectivada.
Os antigos estavam "iluminados" acerca deste seu destino e de que muito pouco poderiam fazer para lhe escapar. "Não pensar nisso" , num desapego-desinteresse crescente, poderia ser uma das "saídas". Não terá ido por aqui o Budismo? Outra escapatória, tão radical quanto fantasiosa, foi a fé numa vida depois da vida, quer fosse para recuperar a felicidade não conseguida nesta primeira passagem pela Terra, quer fosse para tomar posse da felicidade eterna, como prémio de "bom comportamento". Em parte se explica, assim, o nascimento da ética e da moral.
É extraordinário verificar como Damásio mantém intacto o historial completo do processo evolutivo que conduziu à emergência da mente consciente no cérebro, desde as primitivas formas de vida. Todos os mecanismo da «regulação da vida» subsistem no homem da mente consciente e são componente essencial na criação das emoções, sentimentos e pensamentos. Leiam e meditem o seu Livro da Consciência.
De uma maneira simplista poderíamos dizer que as práticas budistas e a fé dos homens não são mais que a homeóstase sublimada.
Fim de conversa?
Penso bem que não. Apenas o principio de uma nova era. A era da ciência. Ainda é uma criança, alguns séculos apenas. Mas já deu para perceber que a «regulação da vida» vai estar cada vez menos dependente dos primitivos automatismos, que eficazmente preservaram a vida que hoje somos. À medida que formos compreendendo e reproduzindo os mecanismos da vida, estaremos aptos a regular a vida de uma forma consciente, preservando o ser humano de acontecimentos e memórias atentatórias da vida e garantindo, para amanhã, uma vida sem percalços. Definitivamente teremos a ciência a cuidar da regulação da nossa vida, aqui neste paraíso onde fomos semeados.
Está-se mesmo a ver que, paulatinamente, a ciência vai tomar o papel da ética e da moral, que foram até agora os «reguladores» estabelecidos e aceites da vida dos homens.
Muita gente vai ainda espernear, até se convencer que é inútil lutar contra os factos.
Mesmo que sejam precisos cem anos para aprovar o uso de um preservativo. As «igrejas» vão acabar por compreender que não podem excomungar a própria Humanidade.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A Forma e o Fundo

É esta harmonia
Entre forma e fundo
É esta harmonia
Entre forma e fundo
Que eu desejaria
Ver florir no mundo
Ver florir no mundo
Ver florir no mundo

São os versos de uma canção de Manuel Freire, que encantavam a minha juventude há quase cinquenta anos.
Foram escritos e cantados quando tu, Luís, ainda não eras nascido. Agora vens dizer-me que as «formas» são a «absoluta vacuidade». E dizes mais, que as formas estão na origem do «apego» da alma (?) do eu (?) a essa mesma vacuidade, impedindo o encontro com a verdadeira realidade, que designarei como o «fundo» da cantiga do Manuel Freire. Será, este «fundo», o correspondente da tua «realidade última, subjacente a tudo, como escreveste no comentário ao post anterior?

«Eu cá acredito na existência de uma realidade última, subjacente a tudo. Ou seja, que no fim há algo "duro" e não o absoluto "vazio".

Eu confrontei-te com a radical «desmontagem» das formas, quando a estrutura espantosa de um ser vivo como o homem se reduz a um punhado de cinzas e, mais ainda, a um informe aglomerado de partículas subatómicas, que se irão subdividindo até ao ...nada. Aqui, atalhaste o meu raciocínio e fizeste a profissão de fé que transcrevi do teu comentário. Mal te li, imaginei-te abraçado ao Pe Mário Oliveira ou ao Dalai Lama, três crentes que por caminhos diferentes encontraram a realidade primeira, «subjacente a tudo».
Eu não me importava nada de me juntar ao grupo nesse abraço. E só não vos caio no colo porque a minha fé segue outra direcção.
Vocês três recusam o absurdo do aniquilamento da realidade que somos (para além da fase da forma). Eu também. Acontece é que vocês ficam-se pela profissão de fé numa hipotética «realidade última», enquanto que eu junto-me aos operários da ciência que querem dar «forma» a essa realidade última e para o efeito pesquisam em todas as direcções e, mais espantoso de tudo, andam a estilhaçar as partículas das partículas, destruindo formas atrás de formas (subatómicas), como que continuando ou reproduzindo o papel da morte, para lhe descobrir os segredos. A esperança destes operários da ciência é, precisamente, aprender como criar formas a partir da realidade última (ou primeira?).
Esmagar um átomo no acelerador de partículas é abater uma forma no limiar do vazio ou do nada, para começar a estruturar a realidade a partir de um «quase nada».
A diversidade impressionantes de formas em que a realidade se estruturou não desvia o homem da "verdade" ou da verdadeira realidade. Mas eu compreendo que é muito difícil aceitar acontecimentos que nos parecem existir e não existir, ao mesmo tempo. O Luís tem uma percepção aguda deste facto e eu compreendo-o. Realmente nós somos um ser muito estranho. Somos actores e espectadores do teatro da nossa própria vida. Se estou no palco, não posso existir, simultâneamente, como espectador na plateia; se estou na plateia, não posso existir como actor no palco. No entanto é isso que acontece, como está a acontecer neste momento em que me observo a escrever este texto. Se houvesse, nem que fosse uma fracção de segundo, a separar os dois actos, teria tempo de sair de mim e contemplar-me "de fora". Mas não acontece nada disso, nem pode, porque sou uma unidade indissociável. E então acabo por perceber que a mente consciente me dá uma espécie de dom da ubiquidade! A coisa é tão estranha que o Luís diz que é tudo uma ilusão: a minha consciência, o palco onde desempenho o meu papel e todo o cenário envolvente. Real mesmo, só a «realidade última», seja lá o que isso for.
Não sei se lhe dê razão, se aceite esta espécie de ubiquidade. O pior é que isto não vai lá com voluntarismos, de modo que vou aceitar o meu dom da ubiquidade. E acabo por dar razão ao Luís, quando diz que as formas atrapalham, porque nos limitam a um determinado tempo e espaço.
Os «inimigos» das formas têm que reconsiderar a sua atitude e acabarão por descobrir que não há "forma" sem "fundo" e que o "fundo" sempre se trans-forma. Ao jeito da plasticina...

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A Realidade E A Ficção

A propósito do comentário do Luís ao post anterior


Não sei, Luís, a quem te referes quando alguém imagina (só pode) um cérebro isolado, «com identidade própria, por oposição à realidade». Não serei eu, de certeza, mas quem sou eu para falar com autoridade dessas matérias. Para uma autoridade que vou conhecendo cada vez melhor, A.Damásio, essa de um cérebro separado e autónomo do corpo de que faz parte, não tem cabimento.
O que tem sido estabelecido como doutrina de teologias e filosofias é algo bem diferente e, a meu ver, aí é que entra o que eu chamaria de «pensamento desincarnado», quando se considera a existência de uma mente ou alma ou espírito, autónomos da realidade física. É a tal «res cogitans» de que fala Descartes.
No Livro da Consciência, A.Damásio faz remontar as "raízes" do cérebro humano, com as capacidades de que beneficiamos, às estruturas celulares e aos fundamentos de onde estas estruturas emergiram.
Mais «continuum» não podia ser.
Ninguém inventa fronteiras para as estrelas ou para os planetas do sistema solar. Ninguém inventa fronteiras para a organização dos electrões e protões em interacção com o núcleo atómico, nem com a organização molecular, celular e dos tecidos, para dar origem aos organismos. Se duas moléculas de hidrogénio e uma de oxigénio se combinam para me encher um copo de água fresca, ninguém ficcionou coisa alguma. Se um dia a nossa brilhante capacidade cerebral reproduzir um cérebro igual a este, como hoje já pode reproduzir um copo de água fresca, continuamos no mundo da realidade que vamos conseguindo compreender, transformar, reproduzir e até criar.
Quando o magnifico Aristóteles, há cerca de 2500 anos, coleccionava centenas de plantas e animais, para compreender a vida, o que ele "via" nas espécies vivas que recolhia não tem comparação com aquilo que um biólogo actual "vê" nessas mesmas espécies. Isto quer dizer que nem Aristóteles nem os actuais biólogos manipulam ficções, antes realidades com fronteiras e nós estamos conscientes dessas fronteiras, que não são mais que os limites do nosso conhecimento. Estou convencido que os biólogos do próximo século hão-de sorrir condescendentes, ao ler o que hoje escrevemos sobre as espécies vivas e o que “apenas” conseguimos perceber nelas.
A consciência dos nossos limites e os enganos a que estamos expostos são a prova mais eficaz de que lidamos com a realidade e não com a ficção. Mas também somos fantásticos ficcionistas.
Desde meninos aprendemos a brincar ao «faz-de-conta», treinando-nos para distinguir entre ficção e realidade.

domingo, 19 de dezembro de 2010

II parte «Do Livro da Sabedoria ao Livro da Consciencia»

Começo com uma citação da última publicação de António Damásio:«...não sugeria de todo a existência de substâncias separadas, uma mental e outra biológica. Não sou um dualista da substancia, como Descartes o era, ou nos fazia crer que fosse, ao afirmar que o corpo tinha extensão física mas a mente não, sendo os dois feitos de substâncias diferentes». (Livro da Consciência, 1ª edição, Circulo-Leitores, pag.91).

Antes mesmo de entrar na análise das consequências do que significa considerar o ser humano como uma realidade única e indivisível, tal como Damásio propõe e eu concordo plenamente, queria deixar mais uma nota sobre a "pregação" e a ciência.
Há muito que me parece evidente que os pregadores atacam os efeitos - a "desgraça" humana - e a ciência ataca as causas dos "desatinos" dos homens, com a mesma simplicidade e verdade que se impõe, como quando explica que, é o Sol e não a Terra, o centro do nosso sistema solar. O resultado desta distinta postura é que os pregadores tendem a desencadear conflitos e a ciência surge no papel de bombeiro e apaziguador, acabando sempre por levar a melhor, porque a inteligência dos homens prevalece, quando ficam patentes as raízes dos "desvarios".
As consequências das parcelares mas enormes verdades científicas são tão demolidoras para a «pregação» dos iluminados que a instintiva reacção destes é condená-las, pura e simplesmente, ou demorar cinquenta ou cem anos a dar o braço a torcer.
A legislação de todos os países condena, e bem, os assassinos em série, que matam com frieza inimaginável. E quem for ler investigadores científicos na área da genética fica a saber que um gene degenerado do embrião humano é a causa imediata do nascimento do monstro assassino tal como podem outras degenerescências ser causa da cegueira, dos diabetes ou do impulso frenético para acumular riquezas.
Os pregadores vão gastar a vida inteira a vociferar contra os «filhos da mãe», quando, nestes, a degenerescencia atenta contra a moral ou a ética que pregam, enquanto que a ciência, no silêncio paciente e profícuo dos laboratórios, procura combater as causas, amando, como ninguém, a condição humana que também é a sua.
É por estas e por outras que eu já não suporto ouvir mais os «padres mários» e me encanto com a nobreza do trabalho de homens como António Damásio.
Também por isso não estranho nada que os pregadores anunciem, constantemente, o fim do mundo para ontem e a ciência nos empolgue com o mundo novo que podemos construir.
Existe, a meu ver, um «preconceito» antigo que determinou a atitude dos «pregadores». É esse «preconceito» que é preciso desmontar, com a mesma convicção e força da verdade dos factos, com que Galileu arriscou a vida para defender as verdades da ciência.
A propósito destas coisas, estou com uma vontade enorme de ler todo, o título que apenas folheei na Bertrand «O Dedo de Galileu».