terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Reencarnação do post anterior

Fiquei de fazer um post sobre a reencarnação, e aqui vai, portanto, o meu primeiro post neste blog, onde normalmente entro à socapa pelas zonas de comentários.

Podia agora correr o risco de vos passar a minha versãozita do Budismo. Há tantas disponíveis, também teria direito. Mas não fui de facto o autor desta variante (ver por ex. http://www.indianetzone.com/29/rebirth_cycle_consciousness_buddhist_philosophy.htm). Entretanto, gosto de pensar que era assim que o Buda realmente via as coisas. Mas se não via, também não faz mal.

A crença comum de reencarnação está associada ao conceito de karma e será mais ou menos assim (vou já avisando que não acredito em absolutamente nada disto): uma criatura está viva e, ao longo da sua vida, vai fazendo acções que são "boas" ou "más", e com isso acumulando um "saldo" devedor ou credor de "mérito". No momento da morte, consoante o saldo, produz-se uma reencarnação mais "favorável" ou "desfavorável", sendo que uma vida humana é considerado bastante bom, pelo potencial que tem de cessação da ignorância. Se se conseguir atingir a iluminação, o ciclo de renascimento cessa. Ou seja, o renascimento não é um prémio por coisa nenhuma, mas apenas sintomático de que o processo não está concluído. Adicionalmente, alguns seres que atingiram a iluminação escolhem deliberadamente originar uma nova reencarnação para benefício de todas as criaturas, com a missão de as ajudar a atingir a iluminação.

Reitero como ponto fulcral que, ao contrário da ressurreição cristã, a reencarnação não é tida como positiva em si mesma, antes pelo contrário. Ela existe enquanto houver ignorância, e cessa com a cessação da ignorância. Mas há ainda outra diferença fundamental: é que não existe uma alma que reencarne. Ou seja, umas reencarnações são a continuidade "kármica" das outras, mas não há uma entidade que transmigre entre corpos. Há um elo de causalidade que se presume estreito entre a criatura falecida e a renascida. O budismo, além de não ter deus, também não tem alma. Também não é muito activo a negá-la, simplesmente porque essa questão não é crucial ao âmbito do budismo, e o Buda preferiu não batalhar nessas polémicas. Para mim é natural que, num contexto social de hinduísmo, uma interpretação popular tenha sido a de uma alma que passa de corpo em corpo e Buda terá certamente tido grande dificuldade em fazer passar a sua mensagem sem distorções.

A visão que eu privilegio é bastante diferente. Uma diferença crucial é de escala. A outra tem implicações morais. Mas existe um estreito paralelo com o descrito atrás.

Já partilhei convosco esta ideia de inexistência de um ego. Ou seja, embora tudo exista (em particular toda a matéria de mim próprio), sempre que consideramos um agregado particular, seja ele um átomo, um dedo, eu, uma turma de liceu, um país, tudo isso são modelos da realidade mas não têm existência intrínseca. Não há um "eu" de dedo. Não há um "eu" de mim. Não há um "eu" de Portugal. Essas coisas têm um valor enquanto modelos a serem processados por mentes conscientes, neste caso humanas, com a curiosidade adicional de que estas "mentes" enquanto tal também são modelos, porque podem ser considerados grupos de neurónios, ou grupos de agregados de maior nível (córtex, amígdala, etc.) - digo isto sem fazer aqui qualquer apologia de qualquer dualidade mente/corpo; poderia ter dito mentes-no-corpo, portanto, ou mentes-corpo, ou até só corpo se se preferir. E estes modelos são úteis no contexto de um elevadíssimo pragmatismo que é o dos organismos sujeitos a selecção natural. Há que reconhecer que é mais fácil de explicar o comportamento evolutivo das espécies da forma habitual do que tentar reduzir tudo ao movimento de átomos. Mas não me parece de todo impossível. Apenas excessivamente complicado para mentes como as nossas. Dá jeito simplificar. O risco é pensar-se que os modelos é que são a realidade, mas isso é inevitável.

Continuando. A verdade é que é incontestável que, ego ou não ego, há uma incidência de causalidade muito forte na matéria que "me" compõe, incidência essa a que me apetece agora chamar "karma". Sem dúvida, tudo o que se passa com a "minha" matéria (desculpem usar aqui um modelozito que sou eu) tem mais implicações na "minha" matéria, regra geral, do que na de outros. A concepção consciente de continuidade do meu corpo entre dois instantes consecutivos, reforçada pela relativamente reduzida mutabilidade do mesmo em tão curtos períodos, é que é, para mim, a reencarnação. Portanto, enquanto - por ignorância, digo - tiver apego a esta ideia de um "eu" intrinsecamente existente, então renasço em mim próprio, transportando para o instante seguinte toda a carga causa-efeito que provém do instante anterior. A implicação moral aqui é que, na minha acepção, não existe uma justiça universal que premeia o bem com o bem e o mal com o mal. Nem tal faria sentido, na ausência de egos. O sofrimento aumenta ou diminui. Não aumenta nem diminui para ninguém em particular. Aumenta ou diminui. É só. Quem atinge a iluminação transcende a ilusão desta continuidade individual. Transcende as suas próprias motivações egocêntricas. E ao fazê-lo, necessariamente quebra uma parte importante deste efeito de causalidade. Porque é uma mudança grande. E ao quebrar o conceito de ego, não renasce mais.

Também se pode ver um certo paralelismo com a ressurreição cristã, em especial na expressão "é preciso renascer". Renascer face a nós próprios em cada instante, por oposição a morrer e renascer de novo, numa qualquer forma por estabelecer... mais ou menos anjinho...? Mas penso que é forçar um pouco encontrar grandes semelhanças. O cristianismo assenta fortemente no ego individual, sob a forma da alma. É uma diferença lapidar.