sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Feliz Ano Novo

A todos os que seguem este nosso espaço de diálogo, faço votos que o novo ano prestes a iniciar-se não só não seja o último da História, conforme prevê o calendário Maia, como traga tudo de bom para cada um de vocês.
Particularmente desejo um feliz Ano Novo aos autores e amigos que gentilmente aceitaram construir comigo este cantinho, o Luis e o Lima.
Que todas as bençãos vos acompanhem até ao fim da vossa história individual, este sim, mais do que uma profecia, é uma realidade inevitável. Mas não inelutável, como demonstra a tenacidade com que o homem procura superar as fragilidades e limitações do corpo e do espirito. Podemos até nem estar conscientes disso permanentemente, mas a verdade é que o homem vive, trabalha, luta, sonha, inventa, cria e recria como se no horizonte da sua história individual não pairasse o espectro do fim da linha. Teimosamente, quase a raiar a "inconsciência", o homem acredita em dias e anos futuros e por isso sonha e projecta, sem levantar os pés do chão firme do presente, afinal o verdadeiro patamar do salto da esperança, como quem diz, "aqui chegamos e pela frente temos mais tempo e mais vida".
O calendário Maia está errado.

domingo, 18 de dezembro de 2011

O Meu Deus

Depois re receber um video sobre o tsunami no Japão, que eu lhe reencaminhara, um amigo meu comentou assim na volta do correio:

"DEPOIS DE VER, SÓ ME APETECE DIZER QUE SE DEUS EXISTE, PURA E
SIMPLESMENTE ELE ESTÁ MORTO!"

Trago aqui a minha resposta porque ela exprime bastante bem o meu pensamento acerca do tema do post anterior "DEUS". Aqui fica.

Sim, meu caro Zé Simões, o Deus da minha vontade, do meu sentimento ou do meu pensamento está morto. Se não estiver, terá tão somente a consistência e a duração da minha própria vida, porque ele não é mais que a minha imagem, semelhança, pensamento e sentimento projectados em "algo" a que chamo Deus.

Saindo deste plano dos mitos, somos confrontados com a nossa realidade que é a vida e a morte. Nem todo o pensamento do mundo consegue explicar, nem todo o sentimento pode abarcar, seja para admirar até ficarmos extasiados, seja para temer até ficarmos terrificados.

Aqui chegados, esqueçamos a palavra que dá para tudo o que lá quisermos meter -DEUS- e quedemo-nos pela contemplação do mistério do nosso universo. Afoito, inteligente e criativo como nenhum outro ser vivo, o homem faz de tudo para superar a sua ignorância e lutar pelo seu lugar neste universo. Lançou e lança mão de tudo para conseguir um lugar seguro e da felicidade possível. E não tem hesitado em servir-se daquele mesmo "Deus-Sentido-e-Pensado" para levar a água ao seu moinho.
Inteligente e autocritico como só ele é, o homem já percebeu o seu próprio "joguinho" de querer fintar o mistério da existência. Perante acontecimentos como este do tsunami japonês, vai tendo cada vez mais dificuldade em "vender" o Deus que fabricou no seu sentimento, no seu pensamento e na sua vontade de ser amado.

Acredito que, bem maior que a frustração da ignorância acerca do mistério da vida, é a frustração que advém da possibilidade de não sermos amados e, pelo contrário, estarmos abandonados à nossa solidão cósmica. Felizmente, temos o antídoto mesmo ao nosso lado: a amizade, o amor e a a compreensão dos que nos estão próximos. Façamos destes o "Deus" que de forma alguma vislumbramos na tragédia de um tsunami qualquer.

Porque nós podemos suportar bem a falta de conhecimento do nosso mundo, mas não sabemos como aguentar a vida sem o amor e a compreensão dos outros.
Não sei quem nos mimou deste jeito.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

DEUS

Quando afirmamos "Deus existe" ou "Deus não existe" de que é que estamos realmente a falar?

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Mudança de Paradigma

"A 'história universal'já não pode hoje ser entendida como sendo somente a história da humanidade (com algumas centenas de milhares de anos), mas deve sê-lo como uma verdadeira história de um universo com 13,7 biliões de anos desde a explosão inicial. Foram precisos contudo cerca de quatrocentos anos para que o novo modelo físico e astronómico do universo se impusesse em absoluto como o fundamento científico da moderna imagem do universo" (Hans Küng, in O Principio de Todas as Coisas, Edições 70).
É uma mudança de paradigma "traumática" até aos nossos dias, quando o homem tem de assimilar que nem a Terra é mais o "centro do mundo" (logo, centro das atenções divinas), nem o luminoso sol ou a nossa imensa via láctea são mais que pontos perdidos na imensidão de um universo em movimento.

E como se tudo isto fosse ainda coisa pouca, a ciência da evolução da vida coloca o homem como apenas mais um acontecimento na incrível odisseia da vida.
Somos um momento na história do universo conhecido e um instante como consciência dessa história que parece ultrapassar-nos até ao infinito.

A nossa conversa acerca do "apego" e "desapego" deverá ter sempre em conta esta circunstancia, para não perdermos a perspectiva do conjunto.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Sagrado Apego

Este titulo sugere o percurso contrário ao do budismo e do ideal monástico em geral.
Nas também sugere o naturalíssimo movimento da vida.
Aquilo a que hoje chamamos de "apegos" são o movimento natural da vida que se foi replicando, multiplicando e complicando, até atingir a misteriosa complexidade que hoje somos. E está bem patente que a nossa mente consciente não sabe muito bem lidar com esta realidade. Como se a própria natureza tivesse dado um passo maior que o que devia, precipitando-se. A chegada à mente consciente foi, de facto, um verdadeiro salto. E depois, como se conservássemos, e conservando mesmo, o exercício e a memória dos automatismos originais, percebemos que nem sempre tudo corre bem e começamos a recear pelo sucesso do movimento vital. É o medo e a dor vividos em consciência, que ora nos pode tolher os movimentos, ora nos pode aguçar o engenho para triunfar.
Eu só posso e quero pensar uma sabedoria que se ajuste a este percurso natural da vida, que as ciências actuais, como nunca na História Humana, nos vão revelando cada vez com mais precisão e profundidade.
António Damásio acaba de publicar o título que resume toda uma filosofia: " E O Cérebro Criou o Homem". Por mais voltas que dermos ao pensamento, nunca será ao contrário. Mas também é verdade que, depois de perceber isso, o homem já sonha ser a sua vez de criar um cérebro consciente...

Um dos muitos paradoxos com que temos de lidar é o percurso da mente consciente, que pretende libertar-se das amarras dos automatismos e ganhar a liberdade criativa, sabendo que esses mesmos automatismos são a sua matriz indissociável e inalienável. Como se fosse possível a metafísica sem a física. Como se fizéssemos de conta que não é o cérebro que cria o homem e que agora é o homem a querer criar um homem novo.

Por isso considero sagrado o "apego" às nossas raízes: à física que faz a metafísica.
Complicado? Se é! Mas talvez mais de acordo com a sucessão dos acontecimentos ou, como gostamos de dizer, mais de acordo com a senhora realidade.

Matthieu Ricard, quando esteve em Lisboa para dar uma conferencia, deixou-nos esta definição do budismo:
"Em essência, eu diria, que o budismo é uma tradição metafísica da qual emana uma sabedoria aplicável a todos os instantes da existência e em todas as circunstâncias".

Não será que a sabedoria desta "tradição metafísica" desvalorizou demasiado a física enquanto raiz dessa mesma metafísica?

Eu penso que sim. O sonho do homem em criar o cérebro que o criou é um completo apego à realidade estruturada.
No principio eram as formas...

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

A Santissima Realidade

Este post pretende ser uma continuação do anterior e surge na sequência dos 66 comentários ao "Budismo Sem Mim".

Estabelecendo uma espécie de analogia com a Santíssima Trindade do cristianismo, começo por especificar quais são as três entidades de uma Santíssima Realidade:

EU (o "mim" da consciência)
TU (a alteridade)
UNIVERSO (as formas objectivas)

São três realidades que se constituem como um verdadeiro mistério e tão paradoxal como o da Santíssima Trindade cristã.
Tal como na minha catequese católica, vou responder "sim" a cada uma das três perguntas sobre o inexplicável paradoxo.

EU sou Realidade? Sim
TU és Realidade? Sim
O UNIVERSO é Realidade? Sim
Então são TRÊS Realidades? Não senhor! São três Entidades iguais e distintas numa só Realidade verdadeira.

Existe proximidade entre o pensamento de Platão e o pensamento de Buda, apesar de uma divergência fundamental. O que os aproxima é a desvalorização do "mundo sensível". O que os separa é a realidade-múltipla.
(O Luís nota que Buda e Platão quase não são contemporaneos. Buda terá vivido um pouco antes. Mas também é verdade que Buda não escreveu nada e o que dele conhecemos recebêmo-lo através das escolas posteriores dos seus muitos seguidores).

Platão afirma a falsa realidade do mundo sensível e todas as suas formas. Mas a cada forma enganosa corresponde uma ideia que é a sua verdadeira essência e, esta sim, perfeita, inteligível e bela.

Buda foge desta confusão toda, em que a cada forma enganosa do mundo material corresponde uma realidade essencial e reduz tudo a uma única ideia-entidade, o SER Uno, Indivisível, Informe, Impessoal.


Em que se fundamenta Buda para dizer que "eu" sou precisamente "tu" e "tu" és exactamente o Universo?
Porque ficou desencantado com a fluidez das formas com que a Realidade se oferece à nossa mente consciente? Porque ficou desenganado com a volatilidade e fragilidade da própria mente consciente? Porque desistiu de procurar (filosofar e viver) perante a grandeza insondável do universo que a sua inteligencia aguda vislumbrou?

A ideia do "ser-uno" de Buda foi gerada pela mesma mente que gerou a ideia múltipla de Platão. Ou alguém duvida que assim tenha sido? O princípio de qualquer filosofia ou teologia é o próprio homem: EU e TU, contemplando um UNIVERSO que, simultanemente, somos e temos consciência de ser. E é esta consciência de ser, este "nada-de-ser" que nos constitui como EU e TU.

Será errado dizer que Buda pretende anular esta "luz da consciência", o EU, e muito menos considerá-lo intrinsecamente uma ilusão. Intrinsecamente, o universo existe, "eu" existo e "tu" existes. Sim, mas integrados, até à completa fusão, no Uno Impessoal. O supremo objectivo do homem é reconhecer "finalmente" que só ilusoriamente "é" ou alguma vez "foi" outra realidade que não a absoluta unidade do SER. Logo, qualquer pensamento de compartimentação é estranho à sua Ideia. E, mais que estranho, Buda determina que é ilusório.
É uma ideia. Que não partilho.

Há uma verdade fundamental que partilho com Buda: a "realidade intrínseca das coisas", seja lá o que ela for, para Buda ou para mim. Eu aceito que não sabemos o que é essa realidade intrínseca mas fazemos parte dela. Por isso mesmo é que discorremos sobre como será.
Para Buda ela é intrinsecamente monolítica e para mim é intrinsecamente multiforme ou multi-estrutural, a ponto de a descrever como a "Realíssima Trindade".

Se imaginarmos a Realidade como uma bola multicolor de plasticina, esta pode ser modelada numa infinidade de "bonecos" sem nunca deixar de ser intrinsecamnete o que é. Enquanto a forma dura, somos intrinsecamente essa forma. E desde que descobrimos isso o nosso sonho é fazer durar o "boneco", se possível, até sempre...

Duas filosofias e duas propostas concretas para a vida: fazer desaparecer o "EU" (o boneco da analogia) ou fazer emergir o "EU".
Por mim, "viva o boneco"!

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Budismo Sem Mim

"Não-Si no Budismo é a Não-Dualidade de Sujeito e Objecto, o que é muito explicitamente afirmado pelo Buda em versos tais como

"Na visão, há apenas visão.
Nem visualizador nem nada visto.
Na audição, há apenas, audição.
Nenhum ouvinte nem coisa ouvida." (Bahiya Sutta, Udana 1.10).

A Não-Dualidade no Budismo não constitui uma fusão com um Brama supremo, mas a realização de que a dualidade de um si/sujeito/agente/observador/fazedor em relação com o objecto/mundo é uma ilusão."


Repesquei tudo isto de um dos teus comentários ao post anterior. Penso, Luis, que é altura de confrontar a negação budista da dualidde com a atitude positiva da afirmação da unidade do ser humano. Esta última é a proposta tanto da "filosofia ocidental" como da neurociência.
A "não dualidade" do budismo aqui referida não tem nada a ver com a unidade intrínseca do homem, sustentada, por exemplo, pela neurociência de Damásio em oposição à dualidade da "dupla substancia" de Descartes. Adiante direi porquê.
Dos versos citados e do comentário que se lhe segue poderia deduzir-se que existe uma espécie de "entidade" que ilusoriamnente interage com o universo. Mas pelo discurso percebe-se que é ilusório o sujeito e ilusório o objecto. Na verdade, só existe a "universalidade" e daí comentar-se que não há fusão alguma com um "Brama Supremo". Não se pode "fundir" aquilo que nunca passou de uma ilusão e portanto nunca esteve fundido ou "desligado". Total ausência de acção e movimento de "fora para dentro" ou o inverso.
Mas aqui começam as interrogações todas. Se não há "fusão", porque a não-dualidade é realíssima, como justificar toda a filosofia do "desapego"! Esta pressupõe que escapou "algo" para o exterior do "universo fundido" ou da realidade como um TODO indissociável e é necessário que a ascese o faça regressar à "unidade".
Faço a pergunta de outro jeito: porque e como se criou a ilusão da quebra de Unidade? A ilusão a criar a ilusão? Ou a doutrina de um "pecado original" no budismo? Impossível, porque não há sujeito que viola nem coisa violada. Apenas violação.
Violação da Unidade? Só pode, para justificar a procura do "caminho do meio".
Desisto.

Do outro lado do pensamento temos a unidade do ser humano. É uma "unidade" que se define não em ralação a uma realidade universal mas ao próprio individuo humano. "Eu e o meu corpo somos um só". Esta é que é a "não-dualidade" da neurociência e da filosofia que a acompanha.
Já em relação à realidade universal a dualidade é assumida na forma de alteridade: "eu" e o "universo". É uma indidualização assumida e a tarefa do homem é construir a individualidade, o "eu", a "identidade", a "pessoa". Quanto menos "fundido" com uma universalidade difusa e impessoal, maior grandeza e nobreza humana. Neste processo de individualização a consciência é o momento mais alto do "distanciamento". Tão "alto" que se pensou ser uma realidade totalmente nova dentro da realidade universal. Aceita-se que seja um fenómeno novo mas que evoluiu como um filho desde o ventre materno.
Está por explicar este fenómeno e permanece Tao intrigante quanto a Realidade-Mãe donde procede.
Talvez porque esta alteridade é incompreensivel, o budismo a considera uma ilusão.
E tenho maneira de provar o contrário?
Não me parece, apesar dos palpites que vou deixando à consideração do meu amigo budista Luís.
Como é sempre assinalado nesta altura do discurso da razão, somos atropelados no nosso optimismo pela fragilidade mortal de um "eu" tão laboriosamente construído.
Se não fosse a emoção da construção da história individual e colectiva, íamos ficar a remoer a ideia de que viemos do nada para lá voltar "quando deus quer".
Se pararmos de remoer aquela ideia pessimista, a História que construimos deixa-nos a sonhar que há mais vida para além da vida.

sábado, 22 de outubro de 2011

Eu Sou O Meu Corpo

Não sei se não será mais que uma "nuance". Eu colocava assim a tua frase: "o nosso corpo-cérebro" não luta para preservar o "eu", mas, ao invés, é justamente por construir um "eu" que a sua auto-preservação se tornou mais eficiente".
O corpo-cérebro não "usa" um "eu" mas constrói um "eu". Esta afirmação pressupõe que não existe um "eu" que vai ser "usado" mas um "eu" que as capacidades físicas e biológicas do corpo-cérebro vai construir.
Neste sentido o "eu" será sempre muito mais um projecto que uma determinada realidade. Tem mais sentido de verbo (acção) que substantivo (coisa).
O que não podemos, em momento algum, é pensar um "eu" autónomo do corpo-cérebro.
A neuro ciência e a psicologia insistem cada vez mais na unidade indissolúvel do ser humano e isto significa que "eu" sou o "todo" corpo-cérebro, testemunhado ou "iluminado" pelo fenómeno da mente consciente.

Assim como não existe uma dupla substancia, também não existe o binómio eu/corpo-cérebro.
Aquilo a que nós chamamos as capacidades ou potencialidades do corpo-cérebro constituem o "todo" que a mente consciente identifica como o "eu". Para facilitar, nós dizemos que apenas o ser humano tem capacidade para construir um tal "eu". Anotemos que no próprio ser humano esta construção é progressiva. Incipiente no bebé,, até atingir o pleno desenvolvimento na "idade da razão" (adulto). Mesmo assim, esta extraordinária realidade do "eu" pode ser suspensa temporária ou definitivamente por qualquer disfunção ou acidente. Nos casos extremos de ausência do "eu" dizemos que alguém está reduzido a um vegetal. Nem como animal é identificado, reconhecendo-se, implicitamente, que também o animal tem a sua consciência.
Escusado será dizer que a disfunção total e definitiva é a morte.
A linguagem corrente assente nesta ciência e filosofia antropológicas criou uma expressão extremamente significativa para designar esta realidade: "eu sou o meu corpo".
Entenda-se "corpo-cérebro".
O profundo significado desta afirmação e deste facto ficará mais evidenciado se estabelecermos o paralelo com o contrafacto "eu sou o meu cadáver".
Uma criança, desde muito pequenina, entra no jogo interessantissimo do faz-de-conta. É literalmente brincar ao falso e ao verdadeiro. É brincar com a capacidade humana de inventar.É a emergência do processo criativo. É quando se percebe que podemos ser enganados e enganar os outros. E também enganar-nos a nós próprios.
E foi a brincar ao faz-de-conta que começamos a desenvolver o espírito crítico e a estruturar a nossa personalidade, a nossa identidade.
"Eu sou o meu cadáver" não é um facto mas um contrafacto e nós começamos a perceber isso desde muito crianças. Depois, pela vida fora, constantemente deixamos acordar a criança que há em nós e fizemos a arte, a filosofia e a teologia. Construimos a cultura como quem brinca ao faz-de-conta.
"Eu sou o meu cadáver". Fernando Pessoa di-lo de uma forma deliciosamente "mentirosa" na sua arte de poeta: "cadáver adiado que procria".
Não tens vergonha, homem, com essa idade andar a brincar ao faz-de-conta?

Posso dizer "eu sou o meu corpo" como posso escrever "eu sou o meu cadáver". Mas eu sei e todos sabem do que estou a falar...

sábado, 15 de outubro de 2011

Pontos de Vista ou Níveis de Análise

Um ponto de vista resulta, necessariamente, de uma análise, nem que seja de uma primeirissima análise, a que vulgarmente chamamos "primeira impressão". Não cavemos, pois, entre ambos um sulco divisório.
Quando dizes que "o ponto de vista sugere uma alternativa", estás muito certo. Acontece é que, quando falamos de realidades tão fundamentais como a nossa própria existência, a vida ou a morte, a alternativa ao "nosso humano ponto de vista" é uma ilusão, uma "jogo de palavras", caindo, como diz Luc Ferry, "pesadamente na metafísica".
Retomando a ideia subjacente ao post anterior, julgar que é verdadeiro um ponto de vista alternativo ao limitado ponto de vista da nossa humana condição, é ter a ilusão que se derruba a muralha onde permanece encerrada a nossa existência.
A lucidez da mente consciente, tanto quando aceita a limitação do seu ponto de vista, que é todo o conhecimento humano acumulado, como quando aceita a realidade inelutável da morte, faz-lhe compreender que tem apenas uma forma de romper o cerco: criar o futuro das suas capacidades, as que já tem e as que vier a desenvolver, consciente de que, se não pode alterar o passado do seu "nascimento" (um certo e incerto desígnio), pode escolher o definitivo que será o seu, tanto como indivíduo como espécie.
Habitualmente chamaríamos a isto "contrariar o destino". Chamar-lhe-ei "contrariar o desígnio".
Apetece-me dizer, de uma forma grandiloquente: nunca o homem esteve tão ciente da sua limitação e da sua liberdade.
Paradoxal? É como somos.

E bastou-lhe, para tanto, a humildade e o realismo de contentar-se com o seu ponto de vista. "Imanente", dirá o filósofo.

A única abertura à trasncendencia é o olhar sobre o futuro por construir. E nunca esquecer que este "olhar sobre o futuro" é, para o individuo, não mais que o horizonte de uma vida. Já para a espécie, até pode ser a eternidade...
Quem quiser fazer drama sobre a sua individualidade tão curta, faça. Arranque os cabelos, esgadanhe-se todo ou fuja para um convento. Fique sabendo, porém, que perdeu a oportunidade de construir um desígnio para si e um desígnio para a sua espécie, limitando-se a ser "a vontade e o desígnio dos deuses"...

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Rompendo A Muralha

Se não existe um desígnio, nem para o universo nem para o homem, também pouca diferença faz que exista mesmo um, pois a verdade é que não fomos tidos nem achados para que tudo isto tivesse acontecido. E, como tal, não nos diz respeito e, muito menos, nos responsabiliza.
Mas as coisas ganham outra dimensão se nos descobrimos com a capacidade não de compreender como aqui chegamos mas de intervir e até decidir acerca do nosso futuro, ainda que dentro de limites reconhecidos e aceites em cada momento.
Nesta perspectiva, em vez de estarmos dependentes e atados a um problema epistemológico (insolúvel à partida e, portanto, tão fútil quanto inútil)deparamos com a tarefa exaltante da construção do nosso próprio desígnio. Se aparecemos aqui sem um, como indica o evolucionismo de Darwin, nada impede que, na fase da evolução a que o homem chegou, comece a criar o seu próprio destino.
Já imaginaram como é empolgante e motivadora uma tal postura? Seremos o projecto que estamos a criar, num crescendo de consciencialização e empenhamento.
A filosofia e as ciências deverão, em consequencia, concentrar-se na forma como construir o futuro que se for idealizando e sonhando. Agora, sim, como canta o poeta Gedeão:

O sonho comanda a vida
E sempre que o homem sonha
O mundo pula e avança...

E a propósito: recordando estes versos de liberdade pelo sonho, compreendem-se mal aqueles outros versos do mesmo Gedeão, carregados de grilhões deterministas.


Ajuda aí Louis, ajuda aí Lima, nesta reactivação do nosso blog, após umas férias, leituras e reflexões.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Conhecimento, Lógica e Indecibilidade

Que sentido faria resumir informações acerca da realidade se o conhecimento, em si mesmo, fosse impossível? Qual a validade de tecer um conjunto de considerações e raciocínios sobre a realidade se a lógica, ela própria, não existisse ou não estivesse ao nosso alcance? Coloca-se, pois, a questão de determinar se o conhecimento (1) e o raciocínio (2) são possíveis e ainda se estão ao alcance da mente humana, em particular (3). Curiosamente, pensando sobre estas questões, surgem de imediato outras questões cuja resolução prévia é necessária: independentemente da resposta a cada uma das questões 1, 2 e 3 ser sim ou não, há-que ter em conta que a validade da nossa análise a estas questões não é independente do seu próprio resultado: esta é uma situação muito particular, pois se a resposta for não a alguma das 3 questões, a nossa capacidade para determinar a resposta correcta a qualquer das 3 questões estará de imediato gravemente comprometida! Além disso, existe também a hipótese bastante razoável de, em geral, o conhecimento e o raciocínio estarem ao alcance da mente humana, mas tais ferramentas pura e simplesmente não se poderem aplicar a todas as questões, podendo haver algumas, pela sua natureza muito particular, que sejam inatingíveis (4). O Teorema da Incompletude de Godel, assim como, na computação, o Problema da Paragem de Alan Turing, evidenciam que nem todas as questões são decidíveis.

Conclusão intuitiva: Com elevada probabilidade, os problemas de determinar se o conhecimento e o raciocínio lógico são ou não possíveis são problemas indecidíveis (ou seja, é impossível decidir qual é a verdade, embora ela possa existir), pela simples razão de requererem, para a sua análise, o mesmo conhecimento e o mesmo raciocínio lógico cuja possibilidade pretendem demonstrar.

A impossibilidade de fundamentar logicamente a validade do nosso próprio raciocínio parece gozar de uma certa lógica... a única atitude coerente, portanto, parece ser esquecer a demonstração e apostar que sim!, que dispomos efectivamente da possibilidade de conhecer, raciocinar e, assumindo essa hipótese como base de trabalho, verificar se graves contradições começam a aparecer, que contradigam a nossa hipótese. Constata-se, afinal, que as aparências, ao invés, a sustentam. Se excluirmos as hipóteses mais paranóicas segundo as quais andamos a ser completamente ludibriados por entidades superiores que têm o propósito firme de nos enganar acerca de tudo o que os nossos sentidos nos indicam (e afins), resulta pouco provável que mentes de raciocínio nulo ou extremamente débil consigam fazer o tipo de previsões que nos são possíveis. Se a mente humana fosse uma estrutura de coerência frágil, as suas construções extremamente complexas provavelmente não resistiriam e enormes brechas já estariam abertas em todos os campos onde é utilizada. Concluindo: lamentavelmente, não podemos demonstrar com todo o infalível rigor matemático que a reposta às questões 1, 2 e 3 é sim. Teremos de nos conformar com uma situação manifestamente insuficiente: uma aposta na intuição, na crença, na fé - ainda que uma fé dramaticamente diversa da fé religiosa - pois que esta se enraíza justamente nas evidências observáveis e não no conhecimento sem fundamento. Continua a ser possível que a resposta seja sim às questões enunciadas, mas a estimação da probabilidade desta hipótese compete a cada um, pelas razões enunciadas acima. Chego, assim, pessoalmente, a mais uma

Conclusão intuitiva: Com elevada probabilidade, o conhecimento e o raciocínio são possíveis e estão ao alcance da mente humana, embora algumas questões possam ser indecidíveis.

No meio de alguma frustração, termino com uma nota de optimismo: se se der efectivamente o caso de a resposta ser sim às questões 1, 2 e 3, e confirmando-se a existência de questões que, não estando ao alcance da mente humana, não sejam, em si mesmas, indecidíveis, existe a hipótese de os humanos produzirem outros processos, ou outras mentes, que resolvam pelo menos algumas das restantes questões cujas soluções não são acessíveis a si próprios.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

O Fascínio da Verdade

Quanto mais vincamos as nossas posições mais claro fica o nosso diálogo. Mas eu sei, Luís, que havemos de chegar a um ponto em que vamos sentir-nos encostados à parede. A nossa razâo vem sendo confrontada com os seus limites, há milénios. Mas atingir esses limites enobrece o homem. Quando sairmos vencidos podemos dizer "pelo menos tentamos". O que é extraordinário é o facto de não termos a mínima vontade de desitir.
Acho que chegou a hora de unir esforços. Assim, gostava que reflectisses comigo sobre a ideia em que tenho insistido de que a realidade intrínseca da matéria, presente nas estruturas ou formas que o observador cria, forma com estas mesmas criações da mente um todo indissociável. Porque a mente espartilha uma realidade que é, como dizes, contínua e eu aceito este facto sem discussão. Mas esse pedaço arrancado ao contínuo da realidade - a forma ou estrutura- traz agarrada a propriedade matricial da "continuidade". Afirmo eu.
Se ambos aceitarmos isto, para onde se encaminhará, a seguir, o nosso pensamento?
Pergunto, porque eu não estou satisfeito com o que tenho em mãos.
Meditando sobre isto, tendo presente aquela ideia da "forma e fundo" de Gedeão (mais próximo que Aristóteles) vejo uma forma que chegou e se desfez, mas deixou um ensinamento, precisamente o "fundo" que permitiu a ciência humana. Como se a "forma" fosse o veículo necessário e temporário da realidade perene, esquiva e sedutora.

Por isso não temos vontade de parar.

domingo, 24 de julho de 2011

Raiz Do Medo( E Do Sofrimento) II

O homem não teme apenas a desintegração da vida. Teme, talvez ainda mais, a desintegração do "eu".
"Ai de mim!", "que vai ser de mim?" são a expressão lancinante de quem antevê a desintegração do corpo e da alma. São gritos de um verdadeiro medo "metafísico" que emergiu no dealbar da mente consciente. Mas as raízes do medo afundam até à primitiva luta pela preservação da estrutura da vida. Os tijolos da vida foram sendo montados em estruturas de complexidade crescente, até atingir o nível de uma central cerebral, ainda cheia de mistérios, como é a nossa mente consciente.
Que esta extraordinária dinâmica fracassasse, foi sempre o grande medo dos indivíduos vivos. Que "eu" me dissolva irremediavelmente, pode ser sentido e percebido como uma tragédia. Neste sentido, o advento da auto consciência humana não anula o medo ancestral de fracassar na simples preservação da vida da espécie. Antes lhe confere uma novíssima dimensão. Porque a consciência humana gerou uma "personalidade", um "eu" íntimo, absolutamente único, e por este “eu” o homem se dispôs a fazer tudo o que fosse preciso para preservar.
Fazendo a ligação ao tema do budismo, diríamos que o homem segue o percurso inverso à proposta budista que é o completo desapego de um qualquer “eu”, como forma de superar o sofrimento. E o desapego ao próprio desapego é o patamar mais elevado, o nirvana. (Se é que entendi alguma coisa do budismo).

Por entre ilusões e desilusões, enganos e desenganos ou victorias e fracassos assumidos, o homem construiu esta história que é a sua. Tem tanto de heróico como de absurdo construir um presente que pode não ter futuro. Chego a pensar que a mente consciente cede ao impulso ancestral da pura conservação da espécie, imolando, no altar da ousadia e do heroísmo, um "eu" consciente que se reconhece único e insubstituivel. É ainda o instinto ancestral do progenitor que dá vida pela sua cria, o garante do futuro dos seus genes. Da sua espécie.
A consciência torna dramático aquilo que há milhões de anos é tão natural. Determinista, quase mecânico.
Esta constatação faz-nos concluir que, sem auto consciência, não existem o medo e o sofrimento humanos.
A autoconsciência gerou o "eu", que sonhou com a fé na eternidade e a expectativa de erradicar o sofrimento.

sábado, 23 de julho de 2011

A Raíz do Medo (E Do Sofrimento) I

"No nível máximo de rigor, nem a cor magenta, nem a flor, nem a vaca, nem tu nem eu existimos". (Citação do último parágrafo do Luís, do seu último comentário ao post anterior).

Num nível máximo de rigor, as coisas não podem ser vista com essa simplicidade. Colocas-te, Luís, na linha do existencialismo, segundo o qual nós somos pura existência, puro devir, como um fogo-de-artifício tão belo (se for bem sucedido) quão fugaz. Dramatizar esta volatidade da existência humana até à afirmação pura e simples da sua "não-existência", parece-me um exagero e uma "leitura" exclusivamente antropocêntrica da realidade. Ora nós adquirimos, pela auto consciência, a capacidade de nos "distanciarmos" da realidade e de nós mesmos, como que olhando "de fora" e poder, ainda, fazer a avaliação desse mesmo "olhar". Mas esta capacidade, e aqui é que entra a tua razão, não anula o "fogo-de-artifício", que de facto somos.
Podemos e devemos, para se rigorosos, estabelecer a diferença entre um "nada-de-ser" e "ser-por-um-instante".
O que me parece é que o budismo pretende anular o próprio instante da vida.
E se eu, ao afirmar tudo isto, ainda estou a ser antropocêntrico (porque nunca posso desprender-me do que sou), também Buda, ao negar a existência, está a afirmar a vida, por um instante que seja.
Ocorre-me trazer aqui uma passagem do livro "Cosmos" de Carl Sagan, em que ele escreve: "Os segredos da evolução são a morte e o tempo(...) Parte da resistência a Darwin e a Wallace deve-se à nossa dificuldade em imaginar a passagem dos milénios (...) O que significam 70 milhões de anos para seres que vivem um milionésimo desse tempo? Nós somos quais borboletas que esvoaçam um dia e pensam que é para sempre".

O pensamento da eternidade pode ser uma ilusão, mas ser por um dia borboleta é bem capaz de ser a realidade…

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Fechar o Circulo

"Estás a precisar de ler uns koans para "ires ao sítio"... :-D"

Se não te conhecesse bem, Luis, depois desta longa conversa sobre o budismo, iria interpretar este teu conselho como a atitude zelosa de um crente cristão a recomendar-me a leitura dos versículos da sua bíblia, para eu reencontrar os caminhos da fé.
Nesta altura da nossa longa conversa convém fazermos um ponto da situação e pensar no que vamos dizer e fazer a seguir.
A mim apetece-me dizer que Siddharta Gautama terá chegado a "buda" , o ideal que se propôs para a sua vida, e depois morreu, por volta dos oitenta anos, numa data que os historiadores não conseguem determinar, mas terá sido entre o ano 500 e 300 antes da era cristã.
Resumindo: nasceu, viveu de acordo com o pensamento que foi elaborando e morreu como qualquer humano de ontem e de hoje.
Eu tenho um prazer genuíno em conhecer os factos da história, mesmo aqueles que foram terríveis e potencialmente desmoralizadores. Como se estivesse a ver um filme de amor ou de terror. A alegria consiste em conhecer a verdade dos factos. E nós vivemos num tempo em que os avanços científicos nos permitem "escavar" essa verdade como nunca antes fora possível.
A esta luz nova ou perspectiva nova sobre a vida e sobre o universo, onde se percebe claramente o encadeamento dos factos e a razão de tais desenvolvimentos, também adquirimos a consciência aguda de quão parciais são ainda as nossas "conquistas". E é esta consciência que nos torna tão diferentes dos nossos ancestrais, que vamos relendo e amando nas páginas magníficas da história que eles escreveram. A história das suas vidas.
Constatamos que, sistematicamente, eles fecharam o círculo do seu pensamento e do seu sonho, convencidos de que haviam encontrado a "teoria final" ou, como gostam de dizer os físicos teóricos no seu campo de pesquisa, a "Teoria de Tudo".
E assim nos legaram os seus "evangelhos" e as instruçóes precisas para os concretizar.
O historiador das religiões que eu tenho seguido nesta abordagem ao budismo, o já referido Karl- Heinz Ohlig, resume-o desta forma: "O budismo também adoptou a lei do "karma", o "samsara", o objectivo soteriológico da auto-anulação e o caminho auto-salvífico da não-ligação à realidade plural. A salvação baseia-se no reconhecimento, tal como nos "Upanishades", e a ignorância tem de ser superada".

Esta é a história, o sonho de felicidade e o pensamento concretizador do budismo, que terá sido do buda Gautama. Ou, mais precisamente, de Gautama, o Buda. Tal como veio a dizer-se, no cristianismo, Jesus, o Cristo. Num caso e noutro são títulos honoríficos que os identificam com a doutrina-pensamento que lhes é atribuída, uma vez que nem um nem outro escreveram o que pensaram e ensinaram.
O historiador não detém o seu olhasr e o seu afecto sobre uma história em particular, mas sobre todas e cada uma, como peças de uma História incrivelmente mais abrangente. E esta "abrangência" possivel é a nossa novíssima conquista.
Quando, fascinados pela beleza das histórias e realizações dos nossos avós, nos prendemos ao passado tão afectivamente que os queremos imitar em total fidelidade, acabamos por assumir um comportamento anacrónico e desfasado da realidade. Justamente merecedor de crítica.
Imagina, Luis, Siza Vieira rendido à beleza arquitectónica do mosteiro da Batalha ou dos Jerónimos, e consagrar a sua vida a um projecto tal e qual.
Pensa na perda enorme para a humanidade, se os gigantes da ciência que nos carregam aos ombros, se tivessem conformado às “teorias perfeitas” dos que os precederam.
Há uma lição que deve ser retirada do budismo: o reconhecimento em profundidade da nossa situação desgraçada e a superação do sofrimento que dela decorre, não se resolve com um movimento até ao íntimo da nossa mente ou à realidade intrínseca das coisas (seja l’a o que isso for).
Porque hoje sabemos que qualquer “viagem” é apenas mais uma etapa de um longo, longo percurso.
A um novo paradigma, um novo pensamento.
“Teoria Final”? “Teoria de Tudo”? Nem na física, quanto mais na metafísica…

quinta-feira, 7 de julho de 2011

A Raiz Do Mal

Não leiam a palavra «mal» no sentido moralista. Aliás, eu fujo do moralismo como o diabo da cruz, porque o moralismo é um mar de equívocos e os moralistas medram à sombra da própria ignorância ou da ignorância alheia, quando não se aproveitam mesmo, oportunisticamente, daqueles que nunca tiveram a sorte de uma escola. A propósito, contava-me, há dias, a minha filha mais nova uma conversa que tivera em Londres com uma vegetariana compulsiva, por força da religião que professava. Tratava-se de uma caso em que o “mal” moralista era de carácter religioso e colava-se ao consumo de alimentos. A minha filha explicou à sua “piedosa” interlocutora que o “mal” não está naquilo que comemos e que, por exemplo, o mosquito da malária, quando pica uma pessoa, não faz uma maldade capaz de matar. A inocente criatura está simplesmente a lutar pela sobrevivência “como nós as duas quando vamos ao trabalho”. Ora acontece que o mosquito se alimenta de sangue e não de frutas…
E sem culpa nenhuma!!!
O erro fundamental dos moralistas é pensarem que nós somos um espírito que incarnou e não a materialidade animal que evolui para a espiritualidade.
Esta capacidade de evolução é real, mas exercemo-la sem nunca nos desligarmos da matriz animal. Daí a nossa frustração perante a paradoxal realidade humana: comportamentos “animalescos” à mistura com as nobres realizações do conhecimento, da beleza, do amor e ânsias de eternidade.
Hoje li a crónica habitual do Manuel António Pina no JN, onde ele aponta o dedo ao verdadeiro tsunami da “maldade humana” que nos submerge. É a pura realidade. Mas eu já estou cansado dos diagnósticos da doença e acabei, frustrado, a leitura desta crónica, igual a milhentas outras que se limitam a sinalizar a desgraça.
Foram séculos ou milénios de pregação contra a maldade, chegando-se ao ponto de inventar o “Deus do Mal”, por falta de explicação aceitável para tanta maldade. Nem promessas de paraísos nem ameaças de infernos bastaram para, ao menos, diminuir a maldade. Avançou e avança como avalanche incontrolável, perante a impotência dos deuses e dos homens.
Penso que este sentimento de impotência perante o mal e a maldade tem uma raiz cultural, da qual nos temos que libertar.
Por mais que ofenda o orgulho de quem se imagina um puro espírito encarcerado num corpo tão frágil como um vaso de argila, está na hora de reconhecer que somos, primeirissimamente, iguais ao mosquito que mata para se alimentar e sobreviver. Toda a sofisticação de meios que usamos para atingir o mesmo fim, sobreviver, decorrente da nossa inteligência e da mente consciente, não anula a nossa primitiva condição. E é sobre esta condição de “mosquito sofisticado” que temos de actuar, se queremos superar-nos para o sonho, para a beleza, para o amor e para a imortalidade.
Mas continuamos a “dizer” tudo ao contrário, repetindo o milenar sermão moralista.
Escrevi “dizer” e não “fazer”, porque há um trabalho extraordinário que vem sendo feito metodicamente pelo menos há quatrocentos anos, não por pregadores de sermões inflamados, mas pelos homens da ciência que apontaram o machado do conhecimento à “raiz do mal”.
Não é a ira de uma divindade que manda o raio, o terramoto, a peste ou guerra. Não é uma divindade perversa que instiga o ódio, a ganância, a inveja e a mentira. Não é o “pecado” dos pais que faz nascer o filho cego, aleijado ou com tendências suicidas ou assassinas.
Todo este rio imenso de “maldades” procede da nossa condição e do universo donde emergimos.
Os pregadores de sermões, antes, por mera ignorância, hoje, “quase” por maldade, ora culpam “Deus”, ora culpam o “Homem”.
Sem lhes dar cavaco, os homens da ciência lançaram as culpas para o caixote das velharias e foram directos às causas das nossas desventuras.
Nascer mais saudável, nesta era do conhecimento, pode ser o primeiro passo para uma nova era, a do homem espiritual. Porque “o que nasce torto, tarde e mal se endireita”.
E nós temos estado a nascer “ao deus dará”.
Em vez de lamúrias e de apontar o dedo à “maldade humana”, aposte-se a sério no conhecimento e nas ciências da vida.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Indiferença Desconcertante V

Contemplação

Sonho de olhos abertos, caminhando
Não entre as formas já e as aparências,
Mas vendo a face imóvel das essências,
Entre ideias e espíritos pairando...

Que é o mundo ante mim? Fumo ondeando,
Visões sem ser, fragmentos de existências...
Uma névoa de enganos e impotências
Sobre vácuo insondável rastejando...

E d'entre a névoa e a sombra universais
Só me chega um murmúrio, feito de ais...
É a queixa, o profundíssimo gemido

Das coisas, que procuram cegamente
Na sua noite e dolorosamente
Outra luz, outro fim só pressentido...

Antero de Quental, in "Sonetos"

Indiferença Desconcertante IV

Solemnia Verba

Disse ao meu coração: Olha por quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, desta altura, fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos...

Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E a noite, onde foi luz a Primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!

Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do pensar tornado crente,

Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se isto é vida,
Nem foi demais o desengano e a dor.

Antero de Quental, in "Sonetos"

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Indiferença Desconcertante III

Se estivesse a escrever para um livro colocava o subtítulo “O melhor da consciência é o amor”.
Rios de tinta gastos para definir o amor e quase sempre se esquece, “no ardor da paixão”, que o amor é o filho maior da consciência humana. Assim mesmo, à letra: amamos, quando atingimos a maioridade consciente.
À frieza distante e infinita do Universo ou de um Deus com ele identificado, responde o calor próximo do nosso amor que retribuí com o olhar consciente de um amor finito, bem à nossa medida. De mãos dadas ou consciências entrelaçadas podemos olhar o Universo sem medo da sua esmagadora grandeza. Quase apetece beijar-nos no cimo da montanha mais alta e provocá-lo com a singularidade da nossa consciência amorosa, sem dizer, apenas pensando, porque o universo é cego e surdo:

isto, e olham-se nos olhos os amantes, tu não tens ou não és.

A morte certa destrói a consciência e o amor. A Humanidade tem lutado persistentemente contra esta fatalidade, ora erguendo monumentos de saudade, ora inventando formas de preservar a vida e fazer durar os dias e os anos da felicidade.
Apesar de “ele” aparecer tão insensível às “criaturas” que gerou, nós queremos conhecer o “Pai”. E ficamos confusos. Não sabemos se agradecer-lhe a realidade a que chegamos e somos, se reprovar-lhe o facto de nos ter entreaberto a porta do paraíso, para logo de seguida a fechar com estrondo na nossa cara, como que a dizer “desenrascai-vos na verdade efémera e sofrida de uma vida”.
Mas nós somos bons filhos e acabou por germinar em nós a semente da gratidão. Já não estamos em guerra com o “Pai”. Afinal, a vida pode ser uma festa breve, mas é tão bom enquanto dura. E agora sabemos que podemos prolongá-la mais e mais. No tempo e no carinho.
Também nisto adultos, finalmente.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Indiferença Desconcertante II

É recorrente as pessoas referirem a “força bruta dos elementos” , em face de uma qualquer catástrofe natural. Sabemos da história religiosa dos homens como estas “forças” ganharam vida e nome próprio e foram entronizadas nos altares do medo, da ignorância genuína e da vontade de sobreviver aos seus ataques impiedosos e destruidores. Em desespero de causa, a Humanidade sacrificou-lhes os próprios filhos, oferecendo-os e imolando-os para aplacar a ira incontrolada. Esta forma derradeira de medo e de impotência perante a “força dos elementos” e, em última análise, da morte iminente, não tem paralelo no Universo, até onde nos foi possível conhecê-lo. E não há como negar que esta atitude “religiosa” da Humanidade resulta da sua condição única de ter chegado à mente consciente.
A emergência da consciência humana foi como terrível despertar em pleno campo de batalha, sem saber como nem porquê. E têm sido milhares de anos vivendo este drama em plena consciência.
Substituir o Universo infinito, escuro, frio e indiferente, por forças personalizadas dos elementos (deuses) ou mesmo por um Deus Único, quer identificando-o com esse universo quer imaginando-o "por detrás”,gerando-o ou criando-o, não nos livra do seu comportamento arbitrário, de absoluta indiferença, em que somos tratados como um caracol que se esmaga com uma patada ou se faz dele um petisco apreciável.
Apesar de tudo, a Humanidade resistiu heroicamente. Desenrascou-se como soube e pôde e andamos nisto desde que nos descobrimos senhores de uma preciosa mente consciente. Preciosa, sim, embora a sua luz quase nos cegue, porque foi graças a ela que inventamos mil e uma formas de fintar o destino e garantir a sobrevivência.
Não somos vencedores de deuses nem escapamos ao universo que nos dá a vida e no-la pode tirar em qualquer curva do íngreme percurso, mas podemos exibir um espírito consciente, com assomos de pura liberdade, capaz de fazer inveja ao Grande Universo que nos pariu. E se “ele” tem melhor, estamos à espera para ver.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Indiferença Desconcertante

Todos conservamos fresca a memória das tragédias nos mares do Japão e da Indonésia que provocaram centenas de milhares de mortos, resultantes de maremotos seguidos de tsunami.
Com a mesma indiferença com que esmago no meu quintal um caracol, inadvertidamente no meu caminho, a natureza se abate "impiedosa" sobre a humanidade.
O advento da ciência, em força, com os "gigantes" como Kepler, Galileu ou Newton, a presença de "forças sobrenaturais" era aceite sem questionar. Se algo se movia ou acontecia é porque alguém empurrava ou fazia acontecer.
Seja para proteger e ajudar, seja para atacar e punir, o "sobrenatural" assinalava continuamente a sua presença.
Atingimos um patamar de conhecimento que nos permite constatar que as forças conhecidas ou ainda desconhecidas "tratam" com a mesma indiferença uma galáxia, uma estrela, um planeta, a matéria morta ou a matéria viva, a vida sem consciência e a vida consciente. O Único privilégio de cada ser consiste na sua própria existência.
O ser humano que se considera único por ser consciente, terá de reconhecer que a consciência não faz dele um privilegiado no universo. Torna-o, apenas perante si mesmo, raro e único, mas apesar de ter a consciência da sua especificidade está tão sujeito à "indiferença" das leis universais como a mais insignificante realidade da matéria. Um meteorito perdido pode acabar quase de repente com biliões de anos de evolução da vida.
Como se o homem tivesse escapado das "mãos de Deus" para cair na teia implacável das leis do Universo.
Terá o budismo intuído esta constrangedora realidade "moderna" e daí apontou o tal "caminho do meio" como a saída mais "airosa"?

quarta-feira, 22 de junho de 2011

O "Ministerio Da Saúde"

A ideia para este post surgiu-me no seguimento dos meus últimos dois comentários à postagem EU SO QUERO SER. Aí afirmei que a única forma de preservar a minha identidade (se quiserem chamem-lhe alma ou espirito ou mente ou o que vos der mais jeito) era preservar a vida do conjunto indissociável e intrinsecamente solidário "corpo-cérebro". E mais uma vez lembro que estou a seguir a neurocência de António Damásio, oferecida de bandeja no seu LIVRO DA CONSCIENCIA. E quando falo no "corpo-cérebro" da neurociência, também podia falar do "pensamento-sentimento" do mesmo Damásio, na sua outra obra SENTIMENTO DE SI ou no ERRO DE DESCARTES.
Todo este intróito para repisar que EU me vou inteirinho juntamente com aquele suporte tão frágil, tão exposto a perigos de toda ordem e tão radicalmente necessário para que continue a dizer "estou aqui" e "sei que estou aqui". Este momento de auto-consciência, único na vida do Universo conhecido, é a mais fabulosa criaçâo da vida e ao mesmo tempo a raiz do "pensamento sentido" da solidâo individual e colectiva.
É quando EU me comprazo no abraço emocionado e consciente do meu amor- um outro EU -ou quando a Humanidade -Colectivo EU - perscruta os céus e pensa no Universo como um Infinito EU. Vulgo, Deus.
E posso garantir-vos que se entrelaçarmos a nosso consciência com a consciência do nosso amor, deixamos de andar perdidos de templo em templo, de deus em deus, em busca de um lenitivo para a solidão porque, pelo menos para a minha e para a tua solidão, o amor consciente é antídoto perfeito.
A Humanidade, o colectivo EU, pode contar com os muitos séculos que tem pela frente para sonhar com o EU INFINITO do seu INFINITO UNIVERSO.
Mas EU não tenho séculos à minha frente e posso nem ter anos nem meses nem dias. Por isso é tão urgente o "meu amor", como o encontro possivel com o Infinito e com alguém que me "reconhece" e me "recebe", e EU reconheço, recebo e integro na minha vida. Este amor será tâo precário, breve e esplendoroso como um fogo-de-artificio mas nem por isso deixa de ser a coisa mais importante da vida.
E assim podemos viver a festa de um dia depois do outro, na expectativa de muitos mais. Mas para isso precisamos de um bom "Ministério da Saúde".
Já sem contar com os precalços de toda a ordem, imprevistos e violentos como um tsunami e contra os quais ainda nada podemos fazer, é urgente cuidar da saúde do "corpo-cérebro", do nosso e dos "outros", sustentáculo e garante da breve festa da vida. Porque é nesta realidade corporal que tudo começa e tudo acaba. Pensar que é de outro jeito, apenas servirá para disfarçar o desastre pessoal de nunca ter encontrado o amor consciente de alguém.

Estava a pensar agora mesmo se foi boa ideia convidar um banqueiro para o "Ministério da Saúde". Porém, muitas vezes as coisas não são o que parecem.
A ver vamos.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

O Meu Karma Karmelita

Esta foi bem achada, Luis. Ao ler fiquei a sorrir, agradado, pelo teu "olho clínico".
Há dias um amigo, filósofo encartado e tudo, disse-me o mesmo mas d forma mais "radical". Já lhe respondi pessoalmente e também no blog dos aaacarmelitas. Pesco do blog:

Re-convertido ao cristianismo

Assim mesmo me escreveu um amigo de longa data. Não sei em que texto viu a minha "re-conversão", mas posso garantir que está equivocado, pela simples razão que eu nunca me des-converti.
Há muito tempo que para mim o cristianismo é muito mais que um "corpo" de ensinamentos, de dogmas e de liturgias. Reconheço-o como a matriz da minha cultura e des-converter-me dela seria negar-me a mim próprio.
No cristianismo interiorizei a fraternidade universal e o amor como o único mandamento para a vida. Nele me tornei militante dos direitos universais da pessoa humana.
Nele vi nascer as democracias, tão imperfeitas quanto as pessoas que as puseram de pé.
Do cristianismo vi emergir uma filosofia humanista, centrada na dignidade da pessoa humana, que produziu a magna carta dos Direitos do Homem.
Das raízes profundas da minha cultura cristã cheguei a esta conclusão libertadora de todos os fantasmas e medos ancestrais: Deus só pode ser este misterioso e infinito Universo que nos gerou, mas um “Infinito de Consciência Pessoal”, que não pode ser identificado com as estrelas ou galáxias, porque a “Consciência” está par além delas de uma forma tão real e misteriosa como a nossa própria e pessoalíssima consciência.
Mas isto é pouco mais que um sonho e no cristianismo se chamou fé e tomou, precipitadamente, como certeza. Não faz mal nenhum que as pessoas vivam como certezas os seus sonhos, desde que respeitem as certezas e os sonhos dos outros.
Por causa deste sonho que fiz meu, comecei a valorizar o papel central das ciências neste mundo do século XXI. Elas procuram desvendar os mistérios da Vida e do Universo, porque tudo o que é mistério está dentro de nós e à nossa volta e não num qualquer “outro mundo” de fábula e superstição. É um mistério que está ao alcance do génio humano que, paulatinamente o “revelará”. Se alguma vez o irá conseguir é um sonho, não uma certeza da fé como “Palavra de Deus” ou “ Deus falou”..
Sei que isto é uma re-leitura do cristianismo da minha matriz cultural, diferente, por exemplo, de filosofias e teologias orientais, que identificam Deus com o Universo Impessoal. Estas propõem um “EU SOU”, mas tão esmagadoramente “Único” que anula tanto o meu “eu sou” como o “eu” do meu amor e do meu amigo. E a última coisa que eu quero perder na vida é a “identidade” do meu amor e dos meus amigos. É essa “identidade” que nos faz ser mais que um átomo, um ADN ou calhau.
A minha genuína admiração por Paulo de Tarso explica-se em grande parte pelo desassombro com que foi capaz de re-ler pela base o judaimso que tão bem conhecia e amava. Construiu o seu "evangelho" sobre a sua história e a sua cultura, abrindo uma nova esperança. Na minha linguagem “dessacralizada” eu diria “um novo sonho”.
Logo que acabe a leitura do “SÃO PAULO” do Pe Carreira das Neves vou trazer aqui o “evangelho de Paulo”, nítida e perturbadoramente diferente do evangelho de Tiago, Pedro e João. Tão perturbador, que as conclusões que o Pe Carreira das Neves vai tirando são contraditórias com o que ele próprio escreve. Quase me apetecia dizer que nem podia ser de outra maneira, sob pena de se provocar um verdadeiro tsunami sobre as igrejas cristãs. Todas. É tão radical o evangelho de Paulo, que até hoje não foi entendido como devia ser. De facto, ninguém leva a sério que amar a Humanidade é amar a Deus. E não devia nem podia haver equívocos, pois reza o Evangelho Segundo S. Paulo, que Deus fez-se homem em Jesus Cristo, assim divinizando a Humanidade.
A grande revolução do evangelho de Paulo de Tarso é que este não propõe um novo culto, depois de se abandonar todo o culto judaico (ou qualquer outro), porque Deus não precisa de nenhuma espécie de culto (Oh sacrílego Paulo!). O evangelho de Paulo é uma “história de amor” entre Deus e a Humanidade, que se inicia com a surpreendente e novíssima revelação de uma verdadeira declaração de amor de Deus à Humanidade, feita na Criação e na Ressurreição.
Digam-me lá se esta não é uma boa razão para eu amar o cristianismo em que me criei. Para não falar das catedrais, belíssimos testemunhos tanto do amor declarado como da confusão entre o vestido da noiva e o coração do noivo.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Eu Só Quero Ser

Assim cantava António Variações, um minhoto como eu. Muito mais do que "ser", ele procurava a sua identidade. Porque "ser", simplesmente, também o ratinho ou sol são.
E não consta que pretendam ir mais além do que aquilo que são. Ir "mais além" é a definiçâo da transcendência. É uma certa consciência do que se foi ontem, se é agora e se quer ser amanhã. Mesmo que o que se deseja ser amanhã seja o regresso ao que se foi ontem.
De modo que o "querer ser" de António Variações é puro inconformismo com o que hoje se é.
O pensamento-sentimento do que fomos ontem, somos hoje e queremos ser amanhã produz-se numa mente sustentada num cérebro tão frágil quão dependente, ele também, de um pouco de oxigénio. E assim temos um ser inerte, um gas apenas, como raiz da nossa vida e do pensamento.
Até parece que o Luis tem razão e a vacuidade é mesmo a essencia da natureza das coisas.
Parece, só parece, porque realmente tudo começa para lá do gas identificado e também ele ligado à raiz de uma realidade mais profunda.
E depois, percebida a subtil dependencia da cadeia dos seres, é a própria realidade dessa cadeia que nos intriga e nos fazer cantar "Eu só quero ser", como se vissemos a nossa própria existencia esfumar-se no infinito...

O filósofo ou o cientista dizem o mesmo, mas de outra forma: eu só quero saber.

A felicidade do homem estará perto da realização desta trilogia sedutora a que os antigos chamaram "Sofia": Querer, Conhecer, Ser.
A mente consciente os convocou.

Morte Assistida II

Sinto que a nossa Polis está numa encruzilhada e que a partir daqui nada será como dantes. Os dados estão lançados e de novo as frágeis caravelas vão aventurar-se no mar alto. Resta saber se os tempos são propícios a estas aventuras.
O caminho percorrido para aqui chegar foi-se degradando até um ponto de quase não retorno. E não me estou a referir ao defice das contas públicas e privadas, porque com essas a Polis tem meios para lidar. Sempre tem, haja vontade.
Preocupa-me, sim, o resvalar persistente e descontrolado para o abismo da manipulaçâo das mentes, por quem tinha o cívico dever de as esclarecer. O poder económico sem pátria, sem rosto e sem outra moral e ética que não seja o lucro, e um lucro rápido e fácil, acabou por ter nas mãos todos os meios para ditar a sua lei selvagem. E fá-lo-á "democraticamente", depois de ter conseguido o controlo total dos media e das instituições de soberania da Polis.
As muralhas da Polis foram derrubadas e resta saber se ficará pedar sobre pedra. Democraticamente, o voto do povo, astuciosamente seduzido e ludibriado por Ulisses, introduziu na cidade cercada por todos os lados o imponente cavalo que escondia no no ventre a destruição e a morte.
Hoje, acordei assim. Não liguem. Foi apenas um sonho mau, um pesadelo mesmo, por uma ceia que me incomodou o fígado.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Morte Assistida

O titulo deste post é um eufemismo para o suicidio. Nâo consigo opinar sobre o assunto. Limito-me a constatar que nascemos sem ser consultados. Podemos escolher, ou pelo menos ter alguma liberdade para escolher a maneira como vivemos. Somos impotentes perante a morte certa, se não for por acidente, será por doença ou velhice.
Não encontro melhor saída do que respeitar a vontade de quem decide, o que nâo é o mesmo que respeitar a liberdade de alguém. Porque não é livre aquele que o despero empurra para a morte. Em condições "normais" o suicida escolheria sempre a vida. Penso eu.

domingo, 12 de junho de 2011

Para o Luis Budista. Discorrendo Apenas.

Há um ditado latino antigo que reza assim: se queres a paz, prepara-te para a guerra.´
Por tudo o que o Luis nos tem trazido sobre o budismo, este ditado propõe exactamente o contrário do "caminho" budista.
Logo à partida, o budismo não estabelece um plano de acção para a sua vida. Antecipar e planear acarreta preocupação e ânsia, logo gera sofrimento, que é tudo o que o budismo pretende evitar, fazendo, simplesmente,o que é apropriado em cada situação real. "Esperar acontecer", como diz a canção.
Observo que o budismo tem como motivaçâo central "superar" o sofrimento ou anular as suas causas, através do auto controle, e nâo da "prevenção" das situações que possam acarretar sofrimento. Porque o acçâo preventiva exige uma constante preocupaçâo com o futuro e com os factores que possam estar fora do nosso controle.
E isso representaria uma grande canseira, preocupaçâo e sofrimento.
Evidentemente que o budismo também faz planos. Por exemplo, se prevê mau tempo ou bom tempo para os dias imediatos toma as suas providencias. Mas digamos que tem por lema fazer o minimo indispensável.
No campo oposto, tempos "os ocidentais" que querem prever e planear tudo ao milimetro. Curiosamente, também para evitar contratempos, surpresas desagradáveis e até grandes ou pequenos sofrimentos.
O ojectivo de uns e de outros parece ser o mesmo. Mas não é.
O budista procura a imunidade ao sofrimento, conseguindo, dessa forma, uma "certa" felicidade, que se caracteriza, exactamente, pela ausencia do sofrimento.
O "ocidental" não deseja uma "certa" felicidade. Quer a felicidade TODA. Quer a divindade ou o infinito e a forma que foi encontrando para realizar esse sonho foi "agarrar-se a Deus", um Deus Pessoal com quem sonha poder interagir e partilhar uma plenitude de vida, se nâo for aqui e agora, será depois da morte...
Como tudo isto é vivido em fé e esperança, numa ausencia efectiva e irremediavel de plenitude, o crente carrega a cruz da vida.
E aqui para nós: quem se contenta ou acomoda a uma "certa felicidade"?

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Criação (Im)Perfeita -Marcelo Gleiser

Passei pela Bertrand e deparei com esta maravilha de Marcelo Gleiser, com o subtitulo " O Cosmos, a Vida e o Código da Natureza".
Não conhecia o autor. Esta 1 edição acaba de sair em Maio. Surpreendeu-me, este cientista que fala a nossa língua. E não só a mim. Na contra-capa pode ler-se: "...apesar dos esforços corajosos de muitas mentes brilhantes, a Teoria de Tudo continua a fugir-nos. Subvertendo mais de 25 séculos de pensamento científico, o premiado físico Marcelo Gleiser argumenta que essa busca é ilusória" !!! E o Prémio Nóbel da Química Roald Hoffman da-lhe razão: "Marcelo Gleiser ensina-nos a encontrar a beleza num Universo imperfeito, assimétrico e acidental". K.C.Cole vai no mesmo sentido: "Gleiser recorda-nos que nem o Universo nem a vida precisam de uma "razão" para terem um significado". E Stuart Kaufman não faz a coisa por menos: "Este livro marca o inicio de uma transformação no modo como vemos o mundo", depois de anotar "que existe uma relação profunda na ciência ocidental entre o monoteismo e a busca científica da Unidade, a Teoria de Tudo".
Pois é, Einstein, afinal eras um "religioso" inominado.
Chega para vos abrir o apetite?

segunda-feira, 30 de maio de 2011

De Hawking à ressurreição

(Em atenção ao último post do Mário)

Penso que Hawking não diz nem deixa entender que chegamos ao “fim da ciência”. Se certas afirmações suas nos levam a pensar desse modo, é talvez mais uma interpretação da nossa parte que vai para além do seu próprio conceito nessa matéria. Na longa historia das ciências humanas, por várias vezes isso aconteceu. Lembremo-nos do recente século dezanove, onde ocorreu o mais extraordinário avanço no domínio das ciências, artes e técnicas. Vários “especialistas”, não forçosamente os mais competentes, não hesitavam em proclamar que não havia mais segredos para a inteligência do homem. Tudo o que havia para descobrir estava descoberto.
Deixando de parte a efervescência, repulsiva, condescendente ou admirativa, provocada pelos livros de Hawking nos meios da divulgação científica e no publico em geral, resta-nos considerar o homem e a sua obra como um todo contribuindo para a divulgação do conhecimento. Certamente que, nas suas pesquisas teóricas, largamente reflectidas e longamente repensadas, Hawking procurou ir o mais longe possível na descoberta das leis da natureza e do cosmos em que ela se insere. Uns acusam-no de “meras operações de marketing”, outros de maltratar a filosofia e a física contemporânea. Há quem vá mais longe e afirme que algumas das suas teorias são um “recuo na reflexão racional”. No entanto, a maior parte das críticas dirigidas a Hawking têm por alvo algumas frases lapidares por ele emitidas, onde afirma convicções de ordem pessoal, que chocam com paradigmas ou dogmas, intocáveis dentro de certas “capelas” de um certo saber “absoluto e inquestionável”.
Não tenho capacidade para discutir as teorias divulgadas por Hawking. Vejo-o como alguém que consagrou a vida à ciência dentro das possibilidades físicas que a natureza lhe concedeu, e que tenta divulgar o resultado das suas conclusões, tanto cientificas como filosóficas. Compreendo-o quando diz: “Eu considero que o cérebro é um computador que cessa de trabalhar logo que os seus componentes se avariam. Não existe paraíso ou vida depois da vida para os computadores avariados; é um conto de fadas destinado àqueles que têm medo do escuro”. Ele, mais do que qualquer banal seu semelhante, viveu na pele as incertezas e fragilidades da condição humana, e teve de afrontar, quase quotidianamente, a realidade de um fim ameaçadoramente próximo e inelutável, facto que nós, na esperança de uma vida longa, mesmo conscientes da nossa finitude, consideramos como uma mera e longínqua eventualidade. Não penso que a intenção da citação acima, seja de afirmar a redução do homem a uma simples ou complexa assemblagem de componentes mecânicos e electrónicos. Ela é apenas a simples afirmação do conceito enunciado e defendido por cérebros de todos os tempos que a inteligência universal colocou alto no patamar do conhecimento: o homem veio de algures, cresceu com a natureza, fez-se a si próprio, e partirá como chegou, num sopro do universo, sem compreender como, nem por quê. O enunciado é meu, mas a ideia tem a idade do ser humano.

Bouddha, Sócrates e Jesus falam da morte, não como um fim, mas como uma passagem a outro estado. Porém, nenhum dos três tem exactamente a mesma concepção dessa imortalidade. Ela varia conforme o meio cultural em que viveram e as experiências espirituais de cada um. Para o Bouddha a vida é um ciclo de sofrimento que começa à nascença e se prolonga com o envelhecimento, a doença, os desgostos e a morte. Sócrates pôs em evidência ideias já expressas por Pitágoras e outros do seu tempo. Os dois defendem a tese da reencarnação, mas divergem noutros pontos como na existência de uma alma permanente e indestrutível ou a identidade espiritual do “Si”. Jesus abraça o pensamento generalizado no povo judeu do seu tempo, que professa a ideia de globalidade do ser humano: o corpo e a alma são um. Nunca faz referência ao futuro post mortem de um principio espiritual separado do corpo, mesmo se insiste na ideia de uma vida depois da vida neste mundo perecível.
Já Sócrates dizia que para um filosofo existem dois registos do saber: o saber propriamente racional ou cientifico, e o saber que ultrapassa o quadro da razão, para atingir outros domínios como o da fé, da intuição, do sentimento ou mesmo da tradição. No primeiro caso trata-se de “certezas”, no segundo de “íntima convicção”. Stephen Hawking, cientifico e filosofo, pertence ao primeiro registo; Bouddha, Sócrates e Jesus, filósofos por excelência, pertencem ao segundo. Todos eles exprimem ideias assentes em correntes de pensamento contemporâneas, mas quase sempre enraizadas num passado mais ou menos longínquo. Nenhum é exclusivo, nenhum é globalmente original, nenhum é totalmente convincente.
Bouddha, Sócrates, Jesus ou Hawking, acaso algum deles teorizou um conceito unificador da verdade que satisfaça as aspirações legítimas do homem na sua angustiosa procura de certezas inquestionáveis?
As sábias teorias e conceitos do imenso armazém do saber de que dispomos, dão-nos, à escolha, toda a “verdade” e o seu evidentíssimo “contrário”. Cabe-nos fazer a escolha para formar o leque das nossas “íntimas convicções” já que as “certezas” nos escapam como sabão debaixo do chuveiro.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Stephen Hawking, Realista ou Simplista?

Numa entrevista para o jornal ingles The Guardian, publicada em 16.05.2011, este físico de renome mundial propõe sem rodeios as suas ideias acerca da vida humana. Começa com uma alusão à paralisia que o afecta há muito tempo: “Vivi durante os últimos 49 anos com a perspectiva de uma morte iminente. Não tenho medo da morte, mas não tenho pressa de morrer. Há tantas coisas que eu queria ainda fazer”.
“Eu considero que o cérebro é um computador que cessa de trabalhar logo que os seus componentes se avariam. Não existe paraíso ou vida depois da vida para os computadores avariados; é um conto de fadas destinado àqueles que têm medo do escuro”.
Perguntado, então, “porque é que nós estamos aqui?”, remete a resposta para uma conferência que terá lugar em Londres, mas vai adiantando que “ínfimas flutuações quânticas no começo do universo semearam os germes da vida humana”.

Se nos colocarmos numa perspectiva de “fim da ciência” e que, com Hawking, está tudo descoberto, pensado e dito, só nos resta ficar vergados a essa verdade total e definitiva. Não é, de maneira nenhuma, o que está a acontecer.
Mas não vale a pena tentar “dourar a pílula”, porque a desagregação e desintegração do conjunto prodigioso constituído pelo nosso corpo e nosso cérebro é uma realidade inelutável e tudo o que a ciência pode fazer e faz é tentar preservar-lhe a vida e eficiência por um tempo mais longo possível. Aliás, as ciências têm como objectivo último essa preservação, ciente de que dela depende a existência do individuo e o futuro da humanidade.
Desvalorizando, na prática, o facto de a maior parte das pessoas acreditar na vida depois da vida, a ciência luta em cada dia, no silêncio dos laboratórios, por mais e vida e mais qualidade de vida, para este conjunto corpo-cérebro.
Convenhamos que não faria sentido lutar tanto pela vida que temos, se a ciência tivesse a certeza acerca da “vida depois da vida” e que essa vida fosse precisamente o paraíso, ou seja, o cúmulo de tudo aquilo com que poderíamos sonhar.
A situação criada é paradoxal. Por um lado a ciência de Hawking afirma que já somos tudo o que é possível ser, ou seja, um monumental fogo-de-artifício e, por outro, a mesma ciência aparece na linha da frente a dar tudo por tudo como se, também, na prática, não acreditasse termos chegado ao “fim da linha”.
Numa perspectiva de “fim da cência”, a ética e a moral seriam relativizadas até ao limite da indiferença e frieza com que legislaríamos para meros computadores. E nenhum obstáculo se colocaria ao poder da ciência de um grupo com poder económico ou outro qualquer.
Como dizem muitos cientistas da actualidade, avisada e sabiamente, decretar o “fim da ciência” é liquidar os sonhos da Humanidade.
A certeza de Hawking é apenas a sua certeza. O que nos fez chegar ao que “somos” pode ser bem mais que meras “ínfimas flutuações quânticas”. E a ciência, na prática, ignorando quaisquer limites, continua a investigar.
Quem não suportar a expectativa, pois que se acomode a Hawking e morra em paz. Em alternativa, creia na "ressurreição cristã" ou na "imortalidade da alma".
Só deveria ser proibido, mesmo, parar a caminhada e a demanda do “santo graal”…

domingo, 22 de maio de 2011

Descer ao Pormenor Para Compreender o Conjunto

Retomando a ´história do "dedo e do gesto", do anterior comentário do Luis, posso imaginar este a ser feito na minha direcção e a significar qualquer coisa como "querias compreender a física quantica, não!..."
Nada demais, quando são os maiores físicos a afirmar que quem diz que a compreendeu é porque não entendeu mesmo nada.
Mas é fascinante ler as exposições de Peter Atkins, Brian Greene, Michio Kaku ou Paul Davis, que nos deixam a "cismar" acerca de como a partir de um mundo tão incrivelmente subtil(já não me atrevo a dizer pequeno)se chegou à estrutura onde emergiu a mente consciente.
Como pedrada no charco, aparece o prémio Nobel da física, Robert B. Laughlinh a escrever "que os maiores mistérios da física não se encontram nos confins do universo, mas bastante perto de nós" (In Um Universo Diferente).
Logo no prefácio, lança o desafio a físicos e filósofos: "Na mente humana coexistem dois impulsos primários e em conflito - um que nos leva a simplificar um objecto nos seus constituintes básicos, outro que nos leva a olhar através desses constituintes para atingir conclusões mais abrangentes". E prossegue: "À beira-mar, por exemplo, muitos reflectimos sobre a majestade do mundo, embora o mar seja, na sua enssencia, um buraco cheio de água salgada". Mas, acrescentará logo de seguida, "ver o mar como simples e finito, como faria o engenheiro, é animistico e primitivo, enquanto vê-lo como uma fonte infinita de possibilidades é avançado e humano".
Não só eu não contesto, como digo que assim falaria também o filósofo.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

O Átomo É Muito Grande!

"...Todos os átomos são infinitamente grandes, o que contrasta vivamente com a perspectiva de os átomos serem pequenos" (Peter Atkins, in O Dedo de Galileu).
Dá vontade de esfregar os olhos para verificar se estamos a ler bem. Peguemos no átomo com a estrutura mais simples de todas, o átomo de hidrogénio. O núcleo tem apenas um protão e para neutralizar a sua carga positiva existe apenas (e sempre) um electrão. Por terem cargas eléctricas opostas, namoram mas nunca se beijam. E também nunca se largam, por mais que o electrão se afaste do protão-núcleo. E pode fazê-lo até ao infinito. Porém, nem se pode dizer que se afasta porque, na realidade quântica, tudo acontece como se o tempo e o espaço não existissem "a priori", como um palco de eventos. De facto, Peter Atkins recorda que as soluções da equação de Erwin Schrodinger para dar conta do comportamento do electrão "prevêem a probabilidade de encontrar o electrão em cada ponto do espaço e não a localização precisa do electrão em cada instante, como na física clássica". Bem, mas isto é como se o tempo começasse a contar só quando tropeçamos no electrão, num espaço que também só começou a existir depois do encontro.
Então é assim: se eu não encontrar o electrão ele não está nem "aqui" nem "agora".
E no entanto eu não posso dizer que não existe, porque do namoro entre protões e electrões nascem todas as macroestruturas. A começar por esta que eu sou.
Eu queria ler o "Dedo de Galileu" até ao fim.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O Outro Lado de Deus

Recebo muitos videos sobre Deus na minha caixa de correio-e, remetidos pelos meus amigos. Invariavelmente, nesses videos Deus é associado a belissimas paisagens, deslumbrantes exemplares da vida animal e gestos de amor e carinho de homens, mulheres e crianças.
Diriamos que a natureza em todo o seu esplendor nos aponta o verdadeiro "rosto de Deus".
Porém, não posso deixar de pensar no rasto de destruição e morte deixado por um terramoto, tsunami, vulcão ou furacão; no estertor da morte de uma presa nas garras do leão e na luta de morte pelo acasalamento que garante a vida futura.
Nunca ninguém associa Deus a estas realidades tão intensas e verdadeiras quanto a beleza do voo do condor no céu azul.
Este simples facto tão comum e, aparentemente, inócuo, pode ser suficiente para conduzir a um pensamento distorcido do que possa ser a Divindade.
Os nossos antepassados politeistas resolveram o problema imaginando um Deus diferente para cada situação. Havia o "Deus da guerra" e o "Deus da paz". Como havia o "Deus do bem" e o "Deus do mal".
Até que chegaram ao "Deus único" que tudo cria e a tudo preside. E será este o Deus que subsiste nestes nossos dias.
Apesar de "único" e transcendendo toda a nossa realidade, continuamos a associá-lo à vida do nosso mundo. E continuamos politeistas como os nossos longinquos antepassados, dando-lhe uma forma, de acordo com os nossos sentimentos e pensamentos.
Nos videos que recebo, dá-se-lhe o rosto da sabedoria e da beleza.
Não está mal, se pensarmos que Deus-é-tudo, mas nunca esqueçamos que falta "o outro lado", que consideramos "feio, destruidor e mau". Se quisermos ser tão honestos e verdadeiros como os nossos antepassados devemos aceitar que Deus também tem esse rosto terrivel...

terça-feira, 3 de maio de 2011

João Paulo II, Morto Ou Ressuscitado?

Está em curso o processo de canonização de João Paulo II. É impossível não associar este nome a S. Paulo. Depois de tudo o que aqui escrevi sobre a “ressurreição segundo S. Paulo”, impõe-se a pergunta: o Apóstolo, de acordo com tudo o que escreveu, “morreu na esperança da ressurreição” e permanece morto até ao “soar da trombeta” no Dia do Juízo Final ou está ressuscitado, como entende a Igreja, vivo e interventor junto de Deus em favor dos crentes e não crentes (porque não terá deixado de ser o “Apóstolo dos Gentios”)?
Como se vê neste processo de canonização e no culto das “almas do purgatório” a Igreja não aceitou a dureza ou loucura da morte integral do homem e da promessa de uma ressurreição futura, incessantemente anunciada por S. Paulo. Não suportou a demora de duzentos ou dois mil anos para a “Segunda Vinda de Cristo” e acomodou-se a uma fé diferente. No entanto, diferente apenas na pregação e nas práticas litúrgicas, porque a teologia não abriu mão da verdadeira fé e esperança de Paulo, mantendo o dogma da ressurreição da carne.
Seria muito importante que assumisse a divergência entre o que prega ou pratica e o que professa, reconhecendo corajosamente que, se Paulo não sabia nem a hora nem a forma de ressuscitar, a Igreja não sabe mais do que ele.
Não vale a pena fingir que do além vêm cartas ou milagres, remetendo para arquivo das velharias a loucura de S. Paulo, que prega a morte total do homem, feito cinza a aguardar o milagre de uma nova criação divina. E S. Paulo está a ser um homem não só de fé mas de inteligência. Com efeito, ele acreditou que se Deus realizou o prodígio da criação do “velho mundo” a partir do nada, porque não poderia realizar um outro ainda maior sobre as cinzas do “ velho homem”?
Voltando à “falta de fé” da Igreja, podemos perguntar: se a cura milagrosa de uma religiosa é “prova de vida” e de santidade de João Paulo II onde fica a fé e a esperança na ressurreição? Que espaço sobra para a fé, quando a razão é esmagada pelas provas irrefutáveis de uma ressurreição acontecida aqui e agora? Que espaço sobra para o “mistério da vida”, que enche a boca dos pregadores por tudo e por nada, para contrapor à descrença de um racionalismo redutor?
Com toda a justiça se poderá acusar os que ressuscitam mortos e os santificam de que andam a falar de um mistério “faz-de-conta” porque, na realidade, já ostentam orgulhosamente “as provas de vida” daqueles a quem o Apóstolo do Gentios apenas anunciou a esperança de uma ressurreição futura.
É gritante, neste caso de João Paulo II, como nos outros todos, o recurso aos milagres para substituir a fé e a esperança de Paulo de Tarso. Pudesse ele levantar-se do túmulo e gritar bem alto: não foi isto que anunciei!
Com a história dos milagres pretende-se subverter as leis da natureza e destruir o mistério da vida. E, ainda pior do que isso, a história dos milagres fabrica uma divindade que actua “a pedido”, arrasando a fé daquelas pessoas que depositavam a sua última esperança de amor e justiça num Deus-Pai, de verdade, que a todos haveria de tratar como filhos. A mensagem que a Igreja faz passar é a de uma divindade milagreira que, actuando “a pedido”, salva da morte a freira doente, ao mesmo tempo que deixa morrer afogados num tsunami trinta mil japoneses de uma vez só.
Não me impressionam as duzentas mil almas na Praça de S. Pedro. Dois biliões acompanharam um casamento real e facilmente duzentas mil pessoas se juntam dentro de um estádio de futebol.
Custa-me ver a Igreja onde me criei abandonar a fé dos seus fundadores, substituindo- a por uma corruptela que deixa indiferente uma juventude predisposta a ser despertada para o mistério da vida, servindo-lhe um espectáculo de milagres em vez de lhe sinalizar o milagre da vida e do universo. Deixou de entender e de pregar que é no mistério que o ser humano encontra espaço para “respirar”. Mistério mesmo, e não um jogo do faz-de-conta-que- não- sabe, mas sabe tudo sobre o que está para lá da morte.
Até sabe que ninguém morre, pensando a morte como se ela fosse um faz-de-conta. E apresenta as provas: os milagres que os mortos fazem!

quinta-feira, 28 de abril de 2011

O Primado da Incerteza

Não tenho em mente a física de Heisenberg, mas algo tão perto de mim e de todos, que está mesmo dentro de cada um, fazendo de nós o que somos.
Pus-me a imaginar como seria, se todas as horas seguintes e os dias e os anos estivessem programados "ao milímetro", em resultado de uma planificação soberba e indefectível e estivesse assegurada, previamente, a sua execução também sem falhas. Imagine-se, ainda, que sou possuidor de uma clarividência total sobre as horas e dias e anos futuros de um tal desígnio. Concluiria que estava dotado do dom da certeza e da infalibilidade efectiva. E também concluiria por uma vida assim inútil, onde tudo já estaria certinho e feito.
Porém, esta não é a nossa condição e realidade.
A vida desenrola-se sob o primado da incerteza e a nossa victoria e a alegria de viver são também sofrimento e incerteza persistentes.
Postas as coisas nesta perspectiva, não se vislumbra como o conhecimento perfeito possa proporcionar a alegria da perfeita liberdade e realização. Bem pelo contrário, constata-se que são a incerteza e o desconhecimento do futuro o alimento fecundo dos sonhos da humanidade e a raiz da liberdade e da felicidade possíveis. Estou a lembrar-me da citação que Einstein faz de Lessing , de que "a busca da verdade é mais preciosa que a sua posse". Não será, com certeza, o elogio da ignorância mas a afirmação da nossa verdadeira condição.
Confrontando este pensamento com as propostas das religiões, ocorre dizer que, no limite, o primado da incerteza nos torna mais humanos que as certezas dos dogmas da fé religiosa.
Mas nada impede que o crente percorra o calvário da sua natural condição. Basta que aceite que não pode antecipar o futuro e comece por incluir a sua fé no próprio sonho da humanidade. Mais do que isto seria negar o primado da incerteza e, com isso, negar a real condição humana.
Não estou a dizer novidade nenhuma. Os cristãos, mesmo os “santos”, "partem" sob o primado da incerteza. Alguns, corajosamente, como Teresa deCalcutá, chegam a confessar o verdadeiro estado do seu espírito.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Fatal Dependencia

Quem seguiu aqui neste blog o debate que ensaiei com o Luís acerca do livre arbítrio e da fatalidade que nos atinge, desde o nascimento até à morte, ao ler este título começa a pensar que estou a dar a volta ao texto. Literalmente. E daí talvez não porque normalmente procuro, quando sou capaz, descer à raiz de um pensamento. Outras tantas vezes, encostado às cordas, atiro com generalidades tão grandes que cabe lá tudo e o seu contrário. É o meu momento glorioso de tarólogo e intérprete dos signos do zodíaco…
Independentemente das descobertas extraordinárias de António Damásio e seus pares da neurociência, sempre me descobri dependente das poderosas raízes do meu corpo. Desde muito pequeno me perdi em monólogos intermináveis, onde confrontava os meus sonhos de menino, de jovem e de homem maduro, com as limitações impostas por este corpo que me sustenta e que me possibilita dizer "eu", conscientemente. "EU" comparo-me a uma pomba (não seria melhor dizer melro?) presa nas mãos de quem a cuida e à espera de que este a solte, para poder voar, imaginando que ganhou a liberdade num espaço a perder de vista e de todas as direcções.
É tão real o sentimento que empolga, inebria e "convence" a razão! Mas Damásio, desmancha-prazeres, vem dizer que a emoção e o sentimento se fizeram pensamento. E que não vale este pensamento final sem considerar a emoção de quando levantamos voo.
E a verdade é que vou ter de voltar ao pombal para me alimentar e ganhar forças para um novo voo e com a certeza de que não dá para contornar a dependência.
Apetecia dizer que a liberdade sentida e pensada deste jeito é uma intermitência na vida de cada um. E acrescentar, depois, que é genuína enquanto sentimento e se converte em fatalidade quando pensamento.
Acredito que alguém, muito cioso da sua inteira liberdade, acabe por desejar não ser mais que pomba ou melro.
Por mim, vou continuar a disfrutar aquela surpreendente intermitência da vida, mesmo sabendo que este corpo que sou tem de regressar, dia após dia, ao pombal onde nasceu.
Sei, de antemão, que um dia já não conseguirei partir ou não poderei regressar. Fatalmente?
Sei lá! Inventa-se e descobre-se tanta coisa…

segunda-feira, 25 de abril de 2011

ABRIL

Abril, sempre?
Isso é que era bom!
Também há Agosto escaldante
Outubro macilento
E Fevereiro tormentoso.
É a vida, pá...

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Da Polis

Esta noticia preocupa-me, vinda de quem vem.

As reuniões de Primavera do Banco Mundial e do FMI terminaram ontem em Washington com um alerta de que o planeta pode estar à beira de uma grande crise.

Segundo Robert Zoellick, presidente do Banco Mundial, a economia global está a "apenas um choque de uma crise completa", que poderá ser despoletada pelo aumento dos preços dos alimentos, que são "a principal ameaça às nações mais pobres".

Este responsável também manifestou o seu apoio à decisão dos ministros das Finanças do G20 na sexta-feira de dar apoio financeiro aos novos governos no Norte de África. "Se esperarmos que a situação estabilize, vamos perder oportunidades. Em termos revolucionários, lutar pelo ‘status quo' não é uma boa opção". Na mesma ocasião, o director-geral do FMI, Dominique Strauss-Kahn, disse estar particularmente preocupado com os elevados níveis de desemprego entre os jovens. "Esta é certamente uma retoma onde não são criados empregos suficientes", afirmou. Para o líder do FMI, para a juventude "existe um risco de que o desemprego se transforme numa sentença perpétua, havendo a possibilidade real de uma geração perdida".

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Da Polis

Cheguei a pensar que tinha exagerado quando afirmei aqui na Laje Negra, que Portugal ficara à beira da tragédia quando o PEC IV caiu e com ele o governo da nação. Ao ler isto, receio bem que para aí caminhemos:

"Quem sustenta esta posição é Robert Fishman, professor na Universidade de Notre Dame, num artigo hoje publicado no jornal The New York Times (com o título Portugal’s Unnecessary Bailout). Eis algumas passagens do artigo, numa tradução do Jornal de Negócios:
‘Apesar de as dificuldades de Portugal se assemelharem às da Grécia e da Irlanda, uma vez que os três países aderiram ao euro, cedendo assim o controlo da sua política monetária, o certo é que “na Grécia e na Irlanda, o veredicto dos mercados reflectiu profundos problemas económicos, facilmente identificáveis”, diz Fishman, realçando que “a crise em Portugal é completamente diferente”.

Em Portugal, defende o académico, “não houve uma genuína crise subjacente. As instituições económicas e as políticas em Portugal, que alguns analistas financeiros encaram como irremediavelmente deficientes, tinham alcançado êxitos notáveis antes de esta nação ibérica, com uma população de 10 milhões de pessoas, ser sujeita a sucessivas vagas de ataques por parte dos operadores dos mercados de obrigações”.

“O contágio de mercado e os cortes de ‘rating’ , que começaram quando a magnitude das dificuldades da Grécia veio à superfície em inícios de 2010, transformou-se numa profecia que se cumpriu por si própria: ao elevarem os custos de financiamento de Portugal para níveis insustentáveis, as agências de ‘rating’ obrigaram o País a pedir ajuda externa. O resgate confere poderes, àqueles que vão “salvar” Portugal, para avançarem com medidas de austeridade impopulares”, opina Robert Fishman.

“A crise não resulta da actuação de Portugal. A sua dívida acumulada está bem abaixo do nível de outros países, como a Itália, que não foram sujeitos a avaliações [de ‘rating’] tão devastadoras. O seu défice orçamental é inferior ao de vários outros países europeus e tem estado a diminuir rapidamente, na sequência dos esforços governamentais nesse sentido”, refere o professor, que fala ainda sobre o facto de Portugal ter registado, no primeiro trimestre de 2010, uma das melhores taxas de retoma económica da UE.

Em inúmeros indicadores – como as encomendas à indústria, inovação empresarial, taxa de sucesso da escolaridade secundária e crescimento das exportações -, Portugal igualou ou superou os seus vizinhos do Sul e mesmo do Ocidente da Europa, destaca o sociólogo.’
Parecendo estar a rebater os argumentos da direita doméstica, acrescenta Robert Fishman:
“Os cépticos em torno da saúde económica de Portugal salientam a sua relativa estagnação entre 2000 e 2006. Ainda assim, no início da crise financeira mundial, em 2007, a economia estava de novo a crescer e o desemprego a cair. A recessão acabou com essa recuperação, mas o crescimento retomou no segundo trimestre de 2009”.
Perante este quadro, Robert Fishman conclui:
“não há que culpar a política interna de Portugal. O primeiro-ministro José Sócrates e o PS tomaram iniciativas no sentido de reduzir o défice, ao mesmo tempo que promoveram a competitividade e mantiveram a despesa social; a oposição insistiu que podia fazer melhor e obrigou à demissão de Sócrates, criando condições para a realização de eleições em Junho. Mas isto é política normal, não um sinal de confusão ou de incompetência, como alguns críticos de Portugal têm referido”.
(No jornal o Sol, desta data).
Para nos deprimir ainda mais, o mesmo jornal dá-nos a noticia de que o ex-Patrâo do BPN e ex-governante de Cavaco Silva, vendeu, a perder 275.000 euros, acções da SLN ao mesmo Cavaco Silva e à filha deste. Infelizmente, não são fofocas de jornais nem "jogadas sujas" de uma campanha eleitoral, mas reprodução de testemunhos em tribunal, onde decorre o julgamento de como se chegou ao "buraco BPN". Vai-se conhecendo como Oliveira e Costa, patrão do BPN, cavou o buraco e quem dele tirou proveito, voluntária ou involuntariamente. E agora nós pagamos com défice das contas públicas e somos castigados impiedosamente, por estas e por outras, pelas empresas dos ratos. Queria dizer de Rating.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

A Herança

A propósito da "herança" que vamos deixar para os filhos e netos, referida pelo Lima na caixa de comentários ao post anterior, preocupa-me particularmente um planeta degradado. Custa-me, aqui em Balugães, ver o "meu" rio Neiva quase um deserto de vida, onde em criança via grandes cardumes de "barbos", nos sítios de águas mais profundas. Os mesmos fertilizantes e desinfestantes que permitem boas colheitas, também matam a fauna e a flora dos rios ou poluem as águas das fontes.
A ciência proporciona um progresso tão atabalhoado quanto o dinheiro da UE (CEE )proporcionou um crescimento descontrolado da nossa economia.
Habituei-me a ver crescer estradas e auto-estradas, recuperações fabulosas de muitos "solares" e casas antigas, de centros históricos. As vilas e cidades ganharam uma cara nova, ressurgindo de paredes velhas e telhados rotos. Abriram-se valas para saneamento de imensas aldeias e a Tv por cabo ou por satélite chegou a todo o lado. As universidades debitam constantemente licenciados e doutores, a informatização acelerou nas empresas, primeiro; no Estado, finalmente.
Vamos deixar aos filhos um país que seria irreconhecível para os nossos pais e avós.
Foi tudo muito depressa? Foi demais? Estragamos o ambiente? Mimamos demasiado os filhos? Endividamo-nos?
Fizemos tudo isso, com certeza. E não fomos capazes de fazer melhor.
Fiz disparates na minha vida, mas não me culpo por isso, porque tenho consciência que fiz como podia e como sabia. Se faria tudo do mesmo jeito? Nem pensar. Só que não se vive duas vezes e a pedra, uma vez arremessada, segue, inevitavelmente, a sua trajectória sem retorno. Resta-nos o lenitivo de saber que podemos fazer diferente, porque agora sabemos e podemos o que antes não soubemos e nem pudemos.

O Conhecimento da Polis (4)

Uma década perdida, disse ele (o presidente Cavaco)...


Investigação científica portuguesa triplica em 9 anos
A página SCImago tem uma enorme base de dados sobre a investigação científica em todo o mundo e todas as áreas, que descobri através do Público.
Nela podemos ver o número de artigos científicos publicados por instituições portuguesas. Este número triplica dos 3655 em 1999 para os 10837 em 2008!
Obviamente que não foi só em Portugal que houve um aumento de produção científica, mas Portugal cresceu mais rápido. De 2007 para 2008 cresce 19%, enquanto a Europa Ocidental cresce apenas 3%, e o mundo 2%. Enquanto em 1996 Portugal era responsável por apenas de 0,76% da ciência na Europa, em 2008 este número já foi de 2%! Comparando com o mundo inteiro, a mesma conclusão: Portugal duplicou a sua importância a nível mundial em 10 anos.

E agora vozes que não chegaram a Belém do Presidente Cavaco...

Nuno Ferrand de Almeida Investigador Universidade do Porto na área da biodiversidade

Em Portugal, temos a sensação que não sabemos o que nos pode acontecer no dia de amanhã. Há um discurso dominante profundamente derrotista...
Tremendo. Nas elites portuguesas instalou-se um pessimismo tremendo...

Como é que um cientista olha para tudo isto?
Sou optimista por natureza. Ainda sou relativamente novo, mas sei exactamente o que era Portugal há 25 anos, quando entrei para a Universidade do Porto, e o que se fez desde aí. Tinha 11 anos no 25 de Abril, mas sei como era Portugal antes disso. Estávamos fora do mundo.
Assistir em menos de 25 anos à transformação que se viveu em Portugal é um privilégio absolutamente extraordinário. Há 20 anos, eu nunca imaginaria que poderia ter um centro que faz investigação no mundo inteiro e que não fica nada atrás dos melhores centros do mundo e estou a falar de Berkeley, Cambridge ou Oxford. E ainda menos imaginaria - falo pela minha experiência, mas isso é visível em muitos outros centros de investigação em Portugal - que seríamos capazes de atrair tantos estrangeiros. Quase 50 por cento dos 1200 investigadores contratados nos últimos dois anos pelo Programa Ciência são estrangeiros e isto diz alguma coisa.

Nem nos apercebemos disso.
Mas isso é fundamental. O caminho tem de passar pela aposta na ciência e isso tem sido feito de uma forma notável. Nos últimos dez, 15 anos conseguimos chegar ao topo dos países que mais têm investido na ciência...

Mas partimos de uma posição muito recuada.
É verdade, não havia nada, ou havia pouco. Mas quando se fala hoje em 5 ou 6 mil artigos científicos publicados e reconhecidos internacionalmente [por ano], isso representa um avanço extraordinário. É quase um milagre. O número de doutorados... E disso as pessoas falam pouco e é preciso que falem muito mais. É preciso falar muito mais das pessoas que trazem conhecimento para cá e que produzem conhecimento cá.
É por isso que me choca muito o pessimismo constante das elites portuguesas. E isso tem reflexo sobre as pessoas. Esse pessimismo cola-se-nos à pele.

Como é que o explica? Mede-se tudo pelo défice?
Em parte é isso. Não sei. Mas não sei porque nunca se olha para o outro país que existe. Existem dois países. Todos os países têm dois países, mesmo que em Portugal essa diferença seja mais acentuada. Mas há 25 anos não tínhamos dois, tínhamos um, que era mau. Hoje temos um país que se distingue nas ciências, nas artes, na literatura, no desporto.

Mas há aquela sensação de que, quando estamos quase a conseguir o nosso objectivo de sermos "europeus", qualquer coisa nos impede. Historicamente, parece que nunca conseguimos percorrer a última milha. Acha que é isso que desmoraliza as pessoas?
Percebo isso. Mas a mim não me desanima. E digo-lhe já porquê: nunca achei que isso fosse possível numa geração. É preciso mais tempo. Estamos a falar de países como a Inglaterra, a França, a Alemanha, que têm uma tradição de mais de 100 anos de investigação e de produção de conhecimento, de reflexão, que nós não tínhamos. Vivíamos completamente marginalizados dessa Europa. Há 30 anos não havia um paper.
Penso que as nossas elites estão um bocadinho gastas na maneira como olham para o lado antigo do que foi Portugal, quando temos ao lado um país a desenvolver-se muitíssimo e a mostrar que é perfeitamente capaz de ombrear com os mais desenvolvidos. Claro que ainda temos o resto, que ainda pesa. E que alimenta essa espécie de frustração que se transmite nesse discurso e que é má, porque leva facilmente as pessoas a desanimarem, a acomodarem-se... Penso que é a nossa obrigação, e também da comunicação social, dar conta desse outro país. Não quero com isso desculpar algumas lideranças...

Justamente, temos hoje muito mais gente educada, universidades muito melhores, uma massa crítica que deveria ser mais exigente. Como é que se explica, então, a fragilidade das lideranças políticas?
Há aí uma contradição para a qual não tenho resposta. Há uma espécie de alheamento em relação ao serviço público e há uma espécie de dissociação progressiva em relação aos partidos e às pessoas que nos governam, que me assusta um pouco... Não sei responder a essa pergunta, só sei que ela faz parte das interrogações que muitos de nós colocamos.

Mas não há também uma responsabilidade das pessoas? Talvez que o país mereça uma coisa melhor e não se esteja a esforçar-se o suficiente para a ter?
Talvez. São contradições e desequilíbrios que julgo que resultam de transformações muito aceleradas do tecido social português. Este pode ser um momento em que isso seja muito visível.

quarta-feira, 30 de março de 2011

A Polis do Conhecimento (3)

Não me contaram, eu ouvi, na sua tomada de posse, o Presidente Cavaco Silva afirmar, depois de elencar os fracassos da governação, que 2000 a 2010 foi uma "década perdida". Pelos vistos, tudo foi trabalho perdido.
Acontece que há uns meses atrás ouvi e li testemunhos de académicos ligados à investigação cientifica, onde estes, entusiasmados com os novos rumos da investigação científica em Portugal, precisamente nos útimos anos, encaravam o futuro com muita esperança, no que diz respeito a este domínio.
Qualquer pessoa que se ineteressa pelo sucesso da Polis sabe que o avanço científico significa prosperidade, numa sociedade cujo sustentação depende cada vez mais do conhecimento e da inovação.
Ouvir o Primeiro Magistrado da Nação, em sessão solene, ignorar a que talvez tenha sido a maior e melhor obra das últimas décadas e falar naqueles termos, numa altura em que os mercados têm os olhos cravados nas nossas capacidades realizadoras, revela até que ponto o obscurantismo da verdade politica se entranhou na mente da classe politica e dirigente, ao mais alto nivel. (?!)
Ninguém, de entre a chamada intelectualidade portuguesa, teve coragem de dar um murro na mesa e dizer "basta!"
Não é de admirar que as empresas de "rating" nos atirem para o caixote do lixo, quando o Presidente reeleito, ainda por cima economista, é o primeiro a fazê-lo.
Que mal fizemos a Deus, para merecer isto?