sábado, 19 de junho de 2010

O Sonho e a Metafísica

Hoje li estas palavras de José Saramago: «O escritor é um homem como os outros: sonha».
Eu considero a capacidade de sonhar uma das marcas distintivas do ser humano e por isso não compreendo que se considere o «sonho» como uma fantasia pouco mais que pueril, ingénua, quase primitiva.
Tal como o «sentimento», o sonho foi escorraçado do campo da filosofia, desconsiderado e desvalorizado e relegado para o «saco de gatos» das nossas sensações. Muitas filosofias pensaram o «homem racional» e o «homem sensitivo» como duas realidades incompatíveis, se não mesmo antagónicas.
Ainda bem que António Damásio corrigiu esse «erro de Descartes».
Desprevenido andou Saramago, que preferiu seguir Buda nesta coisa do homem sonhador. Julgou Saramago que «sonhar» será coisa boa no escritor e no homem mas o mesmo sonho já não conta como fundamento da nossa "humanidade". Ele pensa como Buda, quando este afirma que «a vida feliz não depende da solução dos grandes problemas metafísicos». Ambos rejeitam o sonho como forma de abraçar o infinito e tocar o absoluto, num gesto semelhante à loucura, de quem não cuida, sequer, no sofrimento que acompanha o gesto ousado de sonhar.
Com toda a lógica, o budismo pretende exorcizar o sofrimento. Como o ateísmo militante de Saramago pretende iludir a incerteza que nos assalta perante o «mistério» insondável da existência. A forma radical de o fazer, é negar a existência do próprio «mistério».
Para Buda, qualquer sonho é tão fútil quanto inútil e para Saramago não vai além da esperança num sucesso efémero do indivíduo ou da sociedade e ao alcance de quem ouse sonhar e realizar um sonho «bem concreto e definido como outra coisa qualquer», segundo o poeta A.Gedeão.
Mas existe um sonho e uma forma de sonhar que não são nem «bem definidos» nem como outra coisa qualquer. São os sonhos «impossíveis» que nunca chegaremos a realizar. É destes que trata a Metafísica.
Também eu digo, como Buda, que a nossa felicidade não depende da solução dos grandes problemas metafísicos «como o da eternidade ou não eternidade do universo, o da mortalidade ou da imortalidade da alma e o da existência ou não de um Absoluto» (citando o Luís no seu comentário à postagem «Enfrentar a Fatalidade». É a mais pura das verdades. Pobre de cada um de nós se estivesse à espera que fossem resolvidos «os grandes problemas metafísicos» para conseguir um pingo de felicidade!
A metafísica trata dos problemas considerados «insolúveis» e, portanto, diz o povo, como «aquilo que não tem remédio, remediado está», avancemos para o que «realmente interessa».
Porém, imaginem a tremenda pasmaceira em que cairíamos se tudo fosse tão evidente como dois e dois serem quatro, sem ponta de mistério para nos fazer sonhar. Era como viver numa prisão, com horizontes tão definidos e tão imutáveis como uma eternidade. Era como jogar um jogo, sabendo de antemão o resultado final.
E assim parece quando olhamos o nosso nascimento e a nossa morte.
O que faz nascer a “brecha” do sonho é a outra marca distintiva da nossa humanidade, a consciência, que nos permite ver o que está e quem está diante de nós, contemplando-nos com igual espanto.
São dois ou muitos mundos no confronto do “jogo da existência”, tornando o resultado imprevisível, mas permitindo o sonho.
Permitindo também o “sofrimento”, meu caro Buda, como parte integrante da nossa humana condição. Não irei ao ponto de fazer como alguns “mortificados” santos católicos que acarinhavam os «irmãos piolhos» que lhes sugavam o sangue, mas não me importo nada de aconchegar dentro de mim a sombra da incerteza, aceitando disputar, com lealdade, o jogo até ao fim.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

A Morte de Saramago

Em cima da noticia da morte de Saramago, a TVI deixava algumas notas sobre a mais recente obra do escritor, «Pequenas Memórias». Fixei a leitura deste apelo: «Deixa viver a criança que já foste».
E lembrei-me do que tenho lido ultimamente no «Bebé Filósofo» de Alison Gopnik. Na introdução ela escreve assim: «...nós, adultos, somos apenas o produto final da infância. Os nossos cérebros são os cérebros que foram moldados pela experiência, as nossas vidas são as vidas que começaram como bebés, a nossa consciência é a consciência que recua até à infância. O filósofo grego Heraclito disse que nenhum homem se banha duas vezes nas águas do mesmo rio, porque nem o rio nem o homem são os mesmos.Pensar acerca das crianças e da infância torna nítido que as nossas vidas, e a nossa história como espécie, são esse tipo de rio em fluxo, em perpétua mudança».
Saramago, no fim da sua longa vida, parece ter a consciência perfeita de que a sua identidade permaneceu indissoluvelmente ligada à infância, crescendo das suas raízes, enriquecendo-se e dando os frutos que deu. É como se as suas «Pequenas Memórias» nos apontassem o inicio de um percurso ininterrupto, exactamente como uma semente que germina e cresce e floresce e frutifica e morre, tudo em seu devido tempo.
E ele teve o tempo completo de uma vida.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Budismo e Cristianismo. Outra Vez

Segundo «critérios neurológicos», como diz o Luis, Matthieu Ricard foi considerado o homem mais feliz do planeta. Tenho curiosidade em saber se a Madre Teresa de Calcutá entrou no teste-concurso.
Mas hoje não é por aqui que pretendo ir.
Diz-se do budismo que este não é nem religião, nem filosofia, nem teologia. E também já encontramos cristãos a afirmar que o cristianismo não é uma religião nem uma filosofia. Mas estes últimos afirmam, claramente, que o cristianismo é uma teologia.
Não sei porque se há-se pensar que a filosofia é alheia ao budismo e ao cristianismo. De facto, a filosofia, na sua essência, é o primeiro movimento da mente humana e da consciência humana face ao grandioso espectáculo que se lhe depara, que é a festa e o drama da vida e o universo onde eles se desenrolam. Espanto, encantamento e também todos os medos e todas as interrogações.
É isto que eu entendo por filosofia.
Os discursos produzidos por séculos de interrogações são a «história da filosofia» e o museu precioso, onde sentimos o pulsar da alma dos nossos antepassados. Vibramos com pensamento de Platão ou Aristóteles como nos deslumbramos perante a magia das catedrais.
Também nos comovemos profundamente perante a alma patenteada do budista e do cristão.
O que eu pretendo dizer, com todo este intróito, é que os «movimentos» da alma budista e cristã emergiram da mais pura filosofia.
Separar estes movimentos da alma humana daquele primordial,espontâneo e real encontro com a vida e o universo - a filosofia - é criar mistificações para «levar a água ao seu moinho». E isto significa, na prática, criar barreiras e distancias, baralhando os dados simples da realidade.É confundir o «meu» espanto,encantamento, interrogação ou medo com a essência da Realidade e da Verdade.
Literalmente, esquece-se como tudo começou.
Ninguém, de boa fé, pode negar esta evidencia: no principio era a filosofia.
Se disserem «no principio era a paixão», também vale.
O resto, um vastíssimo e valioso património da humanidade, são apenas interpretações. Neste património se incluem as religiões, as teologias, as "filosofias". Também o cristianismo e o budismo, traduzidos em catedrais de pedra e pensamento.