sábado, 22 de outubro de 2011

Eu Sou O Meu Corpo

Não sei se não será mais que uma "nuance". Eu colocava assim a tua frase: "o nosso corpo-cérebro" não luta para preservar o "eu", mas, ao invés, é justamente por construir um "eu" que a sua auto-preservação se tornou mais eficiente".
O corpo-cérebro não "usa" um "eu" mas constrói um "eu". Esta afirmação pressupõe que não existe um "eu" que vai ser "usado" mas um "eu" que as capacidades físicas e biológicas do corpo-cérebro vai construir.
Neste sentido o "eu" será sempre muito mais um projecto que uma determinada realidade. Tem mais sentido de verbo (acção) que substantivo (coisa).
O que não podemos, em momento algum, é pensar um "eu" autónomo do corpo-cérebro.
A neuro ciência e a psicologia insistem cada vez mais na unidade indissolúvel do ser humano e isto significa que "eu" sou o "todo" corpo-cérebro, testemunhado ou "iluminado" pelo fenómeno da mente consciente.

Assim como não existe uma dupla substancia, também não existe o binómio eu/corpo-cérebro.
Aquilo a que nós chamamos as capacidades ou potencialidades do corpo-cérebro constituem o "todo" que a mente consciente identifica como o "eu". Para facilitar, nós dizemos que apenas o ser humano tem capacidade para construir um tal "eu". Anotemos que no próprio ser humano esta construção é progressiva. Incipiente no bebé,, até atingir o pleno desenvolvimento na "idade da razão" (adulto). Mesmo assim, esta extraordinária realidade do "eu" pode ser suspensa temporária ou definitivamente por qualquer disfunção ou acidente. Nos casos extremos de ausência do "eu" dizemos que alguém está reduzido a um vegetal. Nem como animal é identificado, reconhecendo-se, implicitamente, que também o animal tem a sua consciência.
Escusado será dizer que a disfunção total e definitiva é a morte.
A linguagem corrente assente nesta ciência e filosofia antropológicas criou uma expressão extremamente significativa para designar esta realidade: "eu sou o meu corpo".
Entenda-se "corpo-cérebro".
O profundo significado desta afirmação e deste facto ficará mais evidenciado se estabelecermos o paralelo com o contrafacto "eu sou o meu cadáver".
Uma criança, desde muito pequenina, entra no jogo interessantissimo do faz-de-conta. É literalmente brincar ao falso e ao verdadeiro. É brincar com a capacidade humana de inventar.É a emergência do processo criativo. É quando se percebe que podemos ser enganados e enganar os outros. E também enganar-nos a nós próprios.
E foi a brincar ao faz-de-conta que começamos a desenvolver o espírito crítico e a estruturar a nossa personalidade, a nossa identidade.
"Eu sou o meu cadáver" não é um facto mas um contrafacto e nós começamos a perceber isso desde muito crianças. Depois, pela vida fora, constantemente deixamos acordar a criança que há em nós e fizemos a arte, a filosofia e a teologia. Construimos a cultura como quem brinca ao faz-de-conta.
"Eu sou o meu cadáver". Fernando Pessoa di-lo de uma forma deliciosamente "mentirosa" na sua arte de poeta: "cadáver adiado que procria".
Não tens vergonha, homem, com essa idade andar a brincar ao faz-de-conta?

Posso dizer "eu sou o meu corpo" como posso escrever "eu sou o meu cadáver". Mas eu sei e todos sabem do que estou a falar...