segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A Vacuidade no Budismo




Não é fácil falar do vazio-vazio. O conceito "vacuidade" desde que concebido e formulado já é "coisa" a ser observada ou pensada. Isto é bem complicado.

O Pe Carreira das Neves faz uma boa abordagem sobre esta temática na sua obra recente "Deus Existe?", na qual percorre a  história das religiões. O Budismo pretende não ser uma religião, mas...no fundo persegue o mesmo objectivo, a felicidade, e partindo do mesmo "desgosto" experimentado pelo homem desde que abriu os olhos da inteligência, da razão e da consciência.

Socorre-se, na abordagem ao Budismo, do pensamento do Dalai Lama e do presidente da União Budista Portuguesa, Paulo Borges, pelos quais confessa a sua enorme admiração. Divergindo, no entanto, e muito, não fosse ele um professo cristão na fé e no pensamento filosófico "ocidental".

A mim o que mais me intriga no budismo é esta noção de "vacuidade" a que se pode aceder no estado de buda ou iluminado. Ora vejamos. Segundo entendo, o estado de "iluminado" é o da "consciência pura" por oposição à "consciência de si" . O caminho para a iluminação passa pela anulação do "si" ou do "eu". A consciência não pode permanecer "agarrada" a coisa nenhuma. Nem a "si própria"? É isso uma possibilidade ou a ilusão das ilusões? Porque é que a dependência há-de gerar opacidade em vez de ser uma peça, um suporte mesmo, da consciência e da iluminação, que não serão puras nem a vacuidade, mas muito mais condizentes com o mundo que é o nosso da física, da química e da vida simples ou complexa? Porque se entusiasmam tanto o Dalai Lama e o Paulo Borges com as nuances fantásticas da física quântica? Na esperança de que, partindo as partículas, e as  partículas de partículas de partículas, possam adequar a sua vacuidade a uma física que se dilui no infinito e daí dizer que intrínsecamente não existe?
Será que "observando" a partir da macro-física, em vez de confirmarmos a realidade intrínseca dessa mesma física, chegamas à conclusão inversa, isto é, que tudo não passa de uma ilusão da "consciência de si"? De si, de mim, do universo?
Que te parece, Luís? Ou não queres retomar o discurso? Se for este o caso, compreendo-te. E só trouxe de novo a questão a terreiro por causa do Carreira das Neves.

11 comentários:

  1. «Segundo entendo, o estado de "iluminado" é o da "consciência pura" por oposição à "consciência de si".»

    Comentário: Ao invés, o estado de "iluminado" é o da não oposição. Igualmente, não há um estado iluminado e outro não iluminado.

    «O caminho para a iluminação passa pela anulação do "si" ou do "eu". A consciência não pode permanecer "agarrada" a coisa nenhuma. Nem a "si própria"?»

    Comentário: Só existe o caminho, não quem o percorra. O que há então para anular? Não havendo coisa alguma, a que poderia a consciência agarrar-se?

    «É isso uma possibilidade ou a ilusão das ilusões? Porque é que a dependência há-de gerar opacidade em vez de ser uma peça, um suporte mesmo, da consciência e da iluminação, que não serão puras nem a vacuidade, mas muito mais condizentes com o mundo que é o nosso da física, da química e da vida simples ou complexa? Porque se entusiasmam tanto o Dalai Lama e o Paulo Borges com as nuances fantásticas da física quântica? Na esperança de que, partindo as partículas, e as partículas de partículas de partículas, possam adequar a sua vacuidade a uma física que se dilui no infinito e daí dizer que intrínsecamente não existe? Será que "observando" a partir da macro-física, em vez de confirmarmos a realidade intrínseca dessa mesma física, chegamas à conclusão inversa, isto é, que tudo não passa de uma ilusão da "consciência de si"? De si, de mim, do universo?»

    Comentário: A nossa maneira de lidar com a realidade diz mais acerca de nós próprios do que acerca da realidade. A relativização da nossa perspectiva é uma marca de humildade. Não se pretende anular a visão convencionada das coisas, condição primordial do conhecimento e da consciência, até porque tal se assume como condição imprescindível da compreensão da verdadeira natureza da realidade. Mas tal só se consegue quebrando o afunilamento mental desta perspectiva, para atingir a visão abrangente de que a realidade não se encontra compartimentada nas formas que concebemos mentalmente, mas é vazia de forma.

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  2. Recomendo o Sutra da Plataforma, de Hui Neng: http://hsuyun.blogspot.pt/2011/01/sutra-de-hui-neng-sutra-da-plataforma.html

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  3. Clicar aqui para o Sutra da Plataforma em português.

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  4. Tu colocas-te na perspectiva budista. Segundo esta, não há nem "estado ilmunidado" nem o próprio "iluminado", porque qualquer destes conceitos-formas compartimenta a realidade em si, dando uma falsa ou ilusória realidade ou, melhor dizendo, não dá realidade absolutamente nenhuma. E esclareces: "não há caminho nem quem o percorra". Assim como se estivessemos a pensar numa gota de água do oceano a percorror o oceano para se tornar no oceano...Não faria sentido, porque a gota já é, intrinsecamente, o oceano. E, depois, esse tal oceano apenas existiria para quem observasse "de fora", o que é de todo impossivel a uma "gota oceano".
    Certo?

    Bem, eu coloco-me numa perspectiva exterior ao budismo, crítica, objectivando a sua consciência de "vacuidade". Posso fazê-lo? Posso.E faço. E penso-me "observador", como se um átomo ou uma gota do oceano da realidade, enigmaticamente, acabasse consciente de "ser" ou "não ser coisa nenhuma".

    Por outro lado, se considerarmos a gota em si mesma, sem o enigma da consciência a surgir como factor de perturbação, tremendamente divisionista, relativista e formalista, é claro que nem existe a gota nem o oceano, nem quem os pense, nem quem percorra caminho de espécie alguma.
    Mas eu não designaria tal "estado" (perspectiva do observador) como iluminação mas como absoluta escuridão, onde não existe observador nem coisa observada. Um buda nunca poderá observar outro buda porque, mesmo que existissem, um e outro, nada saberiam de si mesmos nem de outros.

    Se calhar, a nossa sorte é mesmo ser relativos e ter consciência disso. Sorte e azar, porque junto com a euforia da consciência-observadora vem um imenso cortejo de sofrimentos.

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  5. Enganas-te ao pensar que atingir a iluminação é perder competências cognitivas. Ao invés, é ganhá-las. Saber as constelações de cor ajuda-te a lembrar das estrelas, e a organizá-las na mente. Mas não percebes o que é uma estrela, se julgas que é uma parte de uma constelação.

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  6. "O que observamos não é a própria natureza, mas a natureza exposta ao nosso modo de inquirição" - Werner Heisenberg

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  7. Exactissimamente, senhor Heisenberg!A nossa mente consciente, inteligente, racional e curiosa, divide, formata e relativiza "o que observa". Ao fazê-lo, "perde", de imediato, a "visão do conjunto". Visão que nunca teve e nunca terá, nem "com" nem "sem" iluminação. Por que, como não "vemos tudo" tanto faz dizer que vemos como não vemos; e por que não somos tudo ou o "todo", tanto faz dizer que somos como não somos. Neste sentido acompanho o budismo: não há caminho nem quem o percorra; não há quem observe nem coisa a observar. Acompanho sim, mas com uma ressalva: esta perspectiva é a perspectiva do absoluto, do "tudo ou nada", do dogmatismo mais radical. E a principal crítica que faço não é da sua incoerência, porque não existe incoerência alguma, nem do seu dogmatismo, mas de esquecer a singularidade da consciência humana, que nos permite ver até que ponto espartilhamos a realidade, numa quase vã tentativa de a compreender.
    Aparentemente o budismo deixou-se disso (de compreender a realidade em si)e estabeleceu como "caminho" anular os efeitos do turbilhão provocado (sofrimento)pela consciência inteligente, racional e curiosa.
    Talvez proponha como objectivo da realização humana "meditar" em vez de "compreender". E se aceitassemos as duas, dentro das nossas limitações mais que muitas?

    O pensamento é atribuido ao velhinho grego Sócrates, mas não posso deixar de ver nele muita afinidade com a citação que fazes de Heisenberg: "sei que nada sei".

    Sócrates meditou, compreendeu (mas pouco)e sentenciou.
    Gosto disso.

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  8. «Talvez proponha como objectivo da realização humana "meditar" em vez de "compreender". E se aceitassemos as duas, dentro das nossas limitações mais que muitas?»

    Não é isso o caminho do meio? Já não te lembras da história:

    "Yamaoka Tesshu, quando era um jovem estudante Zen, visitou um mestre após outro. Ele então foi até Dokuon de Shokoku. Desejando mostrar o quanto já sabia, ele disse:
    - A mente, Buddha, e os seres sencientes, ademais, não existem. A verdadeira natureza dos fenómenos é a vacuidade. Não há realização, não há ilusão, não há sábio, não há mediocridade. Não há o dar e tampouco nada a receber!
    Dokuon, que estava a fumar pacientemente, nada disse. Subitamente deu uma paulada em Yamaoka com o seu cachimbo de bambu. Isto deixou o jovem muito raivoso.
    - Se nada existe,” perguntou Dokuon, “de onde veio toda esta raiva?"

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  9. Pensei, Luís, que me ias pegar por aqui:

    "...o budismo (...) estabeleceu como "caminho" anular os efeitos do turbilhão (sofrimento) provocado pela consciência inteligente, racional e curiosa".

    Cada vez é maior a minha convicção de que a convergência ou divergência entre as diferentes filosofias tem como ponto de partida a compreensâo do enigma da consciência humana.
    Tudo o que é admiração, interrogação e interesse em conhecer-se e conhecer o mundo que o rodeia, acontece no homem na exacta medida da evolução da sua mente consciente.

    Fico admirado como é possivel, depois da explosão da ciência genética, continuar uma qualquer linha de pensamento sem considerar as descobertas da ciência genética, como se o pensamento e a consciência desse pensamento pouco ou nada tivessem a ver com ela.
    Já todos sabemos que só uma infinitésima parte dos esperamatozóides humanos são fecundados e evoluirão até à mente consciente. E também já sabemos da posibilidade de clonar a mente consciente, bastando, para tal, fazer desenvolver o espermatozoide, isoladamente, em "ambiente" propício.
    A quase totaliadde do esperma humano, todo ele potencialidade de mentes conscientes, acaba decomposta na sua química e na sua física originais.
    Isto devia remeter-nos para a evidência de que é a organização em complexidade crescente da física e da química "inorgânicas" que conduz à mente consciente e às maravilhas de que ela é capaz.
    Claro que se quisermos inverter o processo, começando por dissecar o organismo final, o “corpo-cérebro”, nunca iremos encontrar nem a "subjectividade", nem o "eu", nem a "consciência", nem a "alma", nem a "mente".

    E eu não compreendo porque, estando nós impossibilitados de inverter o processo evolutivo da vida, procurando no passado aquilo que nunca lá esteve, a mente consciente, haveremos de dar esse "salto" concebendo a ideia de que a mente consciente sempre "lá" esteve, desde o tempo do espermatozoide ou até antes da sua física e da sua química!
    Depois que alguém aceita dar este passo, não terá dificuldade em dar o passo seguinte, que é acreditar na sobrevivência da mente consciente "post mortem", ou seja, depois da dissolução do conjunto corpo-cérebro, autonomizando-a dos processos biológicos, químicos e físicos.
    É certo que aquilo que designamos por “matéria” pode não ser, e não é com certeza, apenas o que dela já conhecemos. E continua a ser um enigma como e porquê as partículas “decidiram” entretecer-se, evoluindo até à mente consciente. Aceito viver na ignorância.
    E que tem isto tudo a ver com o budismo? Não será melhor responderes tu, Luis?

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  10. « [...] espermatozóides [...] »

    ...e óvulos, não é? Não há grande esperança de crescimento só no espermatozóide, demos graças.

    «Isto devia remeter-nos para a evidência de que é a organização em complexidade crescente da física e da química "inorgânicas" que conduz à mente consciente e às maravilhas de que ela é capaz.»

    Nem mais.

    «Claro que se quisermos inverter o processo, começando por dissecar o organismo final, o “corpo-cérebro”, nunca iremos encontrar nem a "subjectividade", nem o "eu", nem a "consciência", nem a "alma", nem a "mente".»

    Mas dissecar a realidade é justamente o que fazemos, nunca compreendemos bem a construção. É mesmo mau feitio. Ou falta de interesse prático, já que o tigre todo composto representa um problema bem mais agudo do que os seus átomos considerados separadamente.

    « E eu não compreendo porque, estando nós impossibilitados de inverter o processo evolutivo da vida, procurando no passado aquilo que nunca lá esteve, a mente consciente, haveremos de dar esse "salto" concebendo a ideia de que a mente consciente sempre "lá" esteve, desde o tempo do espermatozoide ou até antes da sua física e da sua química! »

    Mas é justamente por causa do mau feitio. A consciência é mais fácil de constatar que um neurónio. Falta o euqipamento!

    «Depois que alguém aceita dar este passo, não terá dificuldade em dar o passo seguinte, que é acreditar na sobrevivência da mente consciente "post mortem", ou seja, depois da dissolução do conjunto corpo-cérebro, autonomizando-a dos processos biológicos, químicos e físicos.»

    Razão pela qual tantos o fazem. Trouxeste aqui uma visão proveitosa de como este processo cognitivo é muito triste.

    «É certo que aquilo que designamos por “matéria” pode não ser, e não é com certeza, apenas o que dela já conhecemos. E continua a ser um enigma como e porquê as partículas “decidiram” entretecer-se, evoluindo até à mente consciente. Aceito viver na ignorância.
    E que tem isto tudo a ver com o budismo? Não será melhor responderes tu, Luis?»

    O como ainda se há de esclarecer melhor, o porquê já está resolvido: por razão nenhuma.
    Ora isto tem realmente muito a ver com o budismo. É que uma forte vertente do budismo é o combate a esta perspectiva "de cima para baixo" da realidade. Ou seja, do composto para o componente. O budismo não se assume como motor deste "desmantelamento" científico, mas como seu cliente. Verifica que a realidade composta é uma simplificação mental. Conclui pela inexistência de realidade intrínseca de todos os compostos, e pela realidade dependente, ou seja, os compostos são fenómenos dependentes, resultado da interação da realidade com a mente. Mente essa que é ela própria um fenómeno dependente. Repare-se, não é o mesmo que inexistente.

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  11. "(...o tigre todo composto representa um problema bem mais agudo do que os seus átomos considerados separadamente."

    O problema que o budismo acaba por colocar está na reversibilidade do processo: dos átomos para o tigre e deste para os seus componentes quânticos. Porque o processo é real, é um facto. O próprio budismo se apercebeu desse processo e procura escapar-lhe. Pelo "caminho do meio".
    Quando, finalmente, o budismo propõe que o próprio "caminho do meio" não existe (nem quem o percorra) já está a negar a existência do processo átomos-tigre/tigre átomos, mas pretende que não nega a realidade quântica indiferenciada e informe ou o que esteja para além dela e que designa por "verdadeira natureza das coisas" ou realidade intrínseca. Certo, Luis?

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